Com_traste

Com_traste

segunda-feira, 30 de abril de 2012

Amor(as) silvestre


Não sei se foi por chegar a primavera
Se por vontades induzidas pelo palato
Lembrei do tempo das amoras silvestres
Quando num jeito delicado me disseste
Para que retira-se as meias
E tal como antes
Em que pelo meio das silvas me perdia
Deslizei a mão do mesmo jeito
Com algum receio e sem preceito
E tu sorrias
E de mãos ainda nervosas
E salivando mesmo antes de trincar
Prendi o meu no teu olhar
Enquanto tua boca se prendia
Tal como o fruto que eu antes colhia
A pele
Amora doce
Rubra
Bravia
Sacia agora a fantasia
De fruto silvestre na tua mesa
Noite e dia


domingo, 29 de abril de 2012

Lua e meia




Quer cresça
Encha ou diminua
O tempo
Ele conta-se em noites
Em que no meu corpo o dia adormece
E eu continuo acordada em sonhos
Talvez nem dele eu antes soubesse
Não fosse a lua
Insistir em mudar
Como que marcando a hora que passa
Numa contagem silenciosa que me enlouquece
Desde os tempos idos
Em que contar tempo não existia
A lua mudava e sorria
Dando à luz os dias em choro de criança
Agora ela demora
Ou são nuvens a passar
Lua e meia sem luar
É todo o tempo que falta
Para que sem dele eu me lembrar
Aconteça
O tempo do momento exacto em que sou feliz


http://www.youtube.com/watch?v=6ERj6Fxj_GE

sábado, 28 de abril de 2012

Desbravar caminho




Aos poucos
Entre picos de rosa e de ervas daninhas
As mãos desventram o útero do possível ainda não concretizado
E como se fecundassem as coisas que ainda não sabem do próprio ser
Cresce algo em cada instante
Em que toco
Cheiro
Degusto
Olho
E a coisa ainda não acontecida antes…surge
Como se sempre ali estivera…sem eu ver
E nesse milagre
Em que as rosas são apenas rosas
E o pão é apenas pão
Multiplicam-se as possibilidades de matar a fome
E a sede de vida
Num acto único
Intransmissível
Que só o acaso possibilita
Porque se foi por ali
E não por acolá
Porque se olhou este
E não o outro
Porque se parou um pouco
E se viu!
E quando atrás de nós o caminho já está novamente coberto de rosas com picos e ervas daninhas
Dá-se o milagre de voltar atrás…com as mesmas mãos audazes e corajosas…apenas mais velhas e picadas
Desbravando o caminho que já se fez antes
Sendo agora caminho novo…

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Memórias


Não sei se te lembras do tempo que fazia
Acho que estava frio
Não, chovia e corria um vento agreste
Era uma tarde quente, disseste
Ai, não importa
Não sei se te lembras do dia
Foi em Dezembro, quase Natal
Não, lembro de termos rido a bom rir
E dizeres que Abril parece agora carnaval
Ai, não importa
Não sei se te lembras do vinho
Bebias alegremente, um tinto verde em copo fino
Não, lembro de pedires branco, comíamos peixe na brasa
Ou era carne de leitão?
Ai, não importa
Lembras-te??
Deste-me um beijo nos lábios
E sorriste nos meus olhos
Falaste do dia em que me viras a primeira vez
E de como nunca mais iríamos esquecer o primeiro beijo
Prometemo-nos eternos
Casamos em Março
Era são João e dançamos a noite inteira
Lembras-te António?
Ai, não!
Lembras-te Sebastião?





DesFruta



Não sei se foi o doce da laranja
Ou o mel dos teus dedos
Que ao trincar o gomo que em forma de lua me ofertaste
Tornaram os meus lábios insuportavelmente dependentes desse gosto
E quando não estás
Ou não é tempo das laranjas
Olho a lua que mingua
Ou cresce
E salivo gulosa
Ela enche-se de ternura
E pela noite escura
Sacia-me a dependência
Reflectindo nos meus olhos
A forma
A luz
Que transformo em gosto
Passando a língua molhada pela imaginação



quinta-feira, 26 de abril de 2012

E se parasse?



Contrasto
Excedo-me
Numa corrida de sangue em veias exteriores
Saltos em altura com vertigens
Feridas lambidas sem pudor
E tu sorris
Nessa calmaria
De aparente certeza das coisas
Controlando a máquina
Num comando mental em zapping constante, talvez
E nas mãos seguras um cigarro que não fumas
Conseguindo olhar o horizonte de frente
E os sol invade-te
De óculos escuros enfrento-te
Peito cheio de um eu inseguro
Constantemente em corridas fora de mim
E na mão um cigarro que fumo
Palavras soltas impensadas
Mas que me dizem num todo que desconhecia até serem palavras dadas
Soltas
São mais que eu
E só assim entardecem os meus dias
Deito-me
Porque insistem
E nesse sono vejo-te
Como um colo seguro
Puro
E eu nele me encolho
Cansada deste furacão
Mas receio
Ir em contra mão
E há uma sensação de urgência
De um eu em queda
De um eu em aflição
Um querer voar por ai
Um querer ficar no chão
E de manhã volto a correr
Entre esta vontade de ser..eu
E descobrir o que serei na tua mão








Meninices




Se eu te pedisse para me deixares voar nos teus olhos
Deixavas?
E depois os fechasses como quem faz ninho
E eu voasse voasse
Até que adormecesse ai…só um pouquinho
Se eu te pedisse para me deixares beber da tua boca
O mel e o vinho
Deixavas?
E depois me comandasses como quem doseia o carinho
E eu lambesse e trincasse
Até matar a sede dos mimos
Se eu te pedisse que me deixasses afogar no teu corpo
Deixavas?
E depois me lançasses os braços como rede
E eu quase sem ar me quedasse
A ressuscitar devagarinho
Se eu te pedisse que me deixasses encaixar nas tuas mãos
Deixavas?
E depois as tuas nas minhas misturasses
Como quem desfaz as pegadas do caminho
E perdida eu me encontrasse
Nas linhas da tua mão um destino
Se eu te pedisse que me deixasses correr nua no teu peito
Deixavas?
E depois teu coração no meu ficasse
E eu dançasse dançasse…
Ao som do bater do teu no meu peito
E depois voasse voasse
De novo nos teus olhos passarinho
Deixavas?
Vá lá, só um pouquinho...

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Ainda quero!


Quis fazer uma revolução
Gritei ao vento o que sinto
Fiz poemas de revolta
Agitei bandeiras de nuvens
Ergui os braços em protesto
Colei cartazes nos locais proibidos
Agi como um bandido
Dobrei panfletos
Segredei mensagens
Levantei o punho
Apontei miragens
E sonhei
Sonhei muito
Sonhei tanto que acordei faminto
Comi desilusão
Bebi saliva
Desfiz barreiras
Levantei muralhas
Matei tiranos
Prendi os cães
Olhei os pássaros livres
E sorri de peito aberto
Quis fazer uma revolução
Pedi tempo
Vontade
Forças
Liberdade
Pedi o justo
Pedi tão pouco do tanto que me negaram
E morri na praia
Sonho desfeito
Espuma poluída
Em ondas onde naufragam homens sem rumo
Quis fazer uma revolução
E gritei de raiva
Quando olhei os teus olhos inocentes
Que me perguntavam
Porquê?
Porque não conseguiste?
Então
Fiz-te um chapéu de soldado
Um cravo de papel
E contei-te…
Houve um tempo em que uns quantos Homens deram as mãos…e fizeram Abril num cravo vermelho

Sorriste e pedis-me a espada…






segunda-feira, 16 de abril de 2012

Arte Circense


Arriscas?
Perguntava o seu coração ao cérebro
Depois da primeira faca…deixou de pensar
E o coração deixou de querer saber seja o que for
Seguiram-se muitas outras
Sem pestanejar
A confiança surgia no meio do silêncio
E o ruído das facas a cortar o ar
Pareciam palavras voadoras
Estava ali tranquila e calmamente
Sem temer seja o que for
Até que lhe deu vontade de trincar a maçã…
Mesmo no momento em que se ouvia a ultima palavra a cortar o ar…
Zásssssssssss
Arriscas?
Perguntou o cérebro ao coração
Mas este já não respondeu

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Pé de meia


Está frio!
Dizia ela com ar desconfortável e triste.
Ele sorria e falou-lhe do(s) Pólo Norte e que adorava a nova música deles.
Chove!
Repetia ela com ar amuado.
Já reparas como a terra molhada cheira bem?
Respondeu ele, sempre com um sorriso puro e verdadeiro no rosto.
Nunca mais chega o comboio!
Repetia ela em voz impaciente.
Sabe tão bem estar assim…abraçado a ti nesta espera...e saber que ainda temos tempo…
Dizia ele com uns olhos meigos e doces.
Tenho os pés frios, acho que devia ter trazido as meias de lã.
E ao ouvir isto ele simplesmente abraçou os seus pés nos dela…

Por vezes…precisamos de aprender a ser felizes…e há quem nos ensine quase sem saber…fazer um Pé de meia de afectos…não confiem nos bancos (a não ser que sejam de alguma estação…)

No acaso


Não é que te queira agarrar
Quero apenas não perder a visão
Beber-te enquanto te liquidificas das palavras que solidamente te formam
Mas escorregas
Como rio de corrente forte em cascata
Ou brisa que sopra leve em contra mão
Autista por opção
Olhos cheios fixando o vazio em redor
Farol para jangadas sem rumo
Fio de prumo enrolando o pião
O acaso
No ocaso
Encontrão
Coincidência com programação
Deixa apenas que me possa rever em ti
E fazer do rio que nos separa
Reflexo da corrente que nos une
Na contrária visão do mundo
Que partilhamos
Mas nos arrasta para a massa compacta da multidão
E nas margens vamos ao fundo

Abajur


A luz egocêntrica
Vinda do excesso que nos forma
Nem sempre prejudicial aos próprios olhos
Pode causar cegueira exterior
Hoje está um vento vindo não sei bem de onde
É daqueles que sopra com uivo
Os restos deixados por ai voam livres
E os cabelos transformam a cabeça num monte de pontas soltas
As ideias baralhadas parecem querer sair de nós
O caos
E foi quando uma ideia luminosa surgiu
Que em vez de chapéu coloquei um abajur
Dá um toque naif ao mesmo tempo que internacional
E objectiva...mente
Ceguei-me

Águas mil


Nem parece Abril
Não se cumpre a sabedoria popular
As aguas já não caem do céu
Privatizaram Deus
E os cravos sem força para rebentar
Seca-se a terra e as mãos
A fome beija a mão ao ladrão
E pede-se aos Homens de boa vontade para acreditar
E eles acreditam...sem vontade
Mas na boa
Bebe-se um café, num encolher de ombros em lamento
Fuma-se um cigarro, queimando o tempo
E ninguém se lembra...É Abril
Foi Abril
Mas antes caia a agua dos céus
Os cravos cresciam a olhos vistos
E os Homens sonhavam

Do fundo


Olhou o fundo do poço a medo
O escuro revelava ser sensato ter receio
Nem água
Nem luz
O poço enchia-se apenas de eco
E de hera que corajosamente crescia nas suas paredes
Revelava anos, histórias, vidas e mortes
E a lenda colocara o poço na rota dos turistas
Que entre sorrisos desconfiados ou gargalhadas nervosas
Tentavam disfarçar a esperança da concretização de um desejo
Apenas ela conhecia a verdade
Mas fora condenada ao silêncio
A mãe, talvez para encontrar forças, aceitara a condição como dom Divino
E diariamente puxava do fundo do poço as moedas dos crentes em milagres
Ela
Diariamente segredava ao poço todas as palavras que nunca ninguém a ouviu pronunciar
E só ela sabia que o verdadeiro milagre
Era o eco dos seus silêncios

Réplicas de uma estação


Olhei o semáforo
Pareceram horas intermináveis
A obrigatoriedade de parar inquieta-me
Aproveito o som que parece escolhido por mim
E os dedos pedem a um cigarro que se instale entre dois
O mundo mexe-se em meu redor
As pingas do pára-brisas dão um toque especial ao dia
Nada é o que parece
E eu sorrio por saber que a primavera mente
Descarada!
O pisca assinala a minha direcção
Mas naquela espera mudo de ideias
Por saber impossível…
Apanho a mão que dizem ser minha
Viro a direcção no sentido assinalado
Sabendo que mais à frente farei inversão de marcha
E o Jorge continua a cantar que imperdoável é o que não vivi…
Sorri, gosto de sorrir sozinha enquanto conduzo
Os dedos matam os restos do cigarro
E eu teimo em não limpar as pingas…
O mundo com uma película a protege-lo
Parece-me um produto embalado no supermercado
Outro semáforo intromete-se entre mim e o destino
Olho as horas e já são aquelas que não vi passar
Estaciono
Cheguei…mas peço ao carro que aguarde por mim, não demoro!

http://www.youtube.com/watch?v=ib3mycVOEig&...

Delirium


Depois de uma semana só com noites
Irás procurar os dias estrada fora
Acertas o meio dia pelo por do sol
Sentirás a ilusão da luz ao fundo de um túnel
E acordarás ao som do apitar de um comboio
Sem que te consigas mexer da linha
E repartes o pão sagrado de domingo
Em migalhas que seguras nos dedos
Alimentarás a ave que ficou órfã
Cantarás como a ave do paraíso
E voarás em círculos
Das escrituras sagradas como testamento
Serás o único herdeiro
Passarás a palavra da tua boca para a minha
E quando estiver tudo fora do lugar
Darás à luz novos dias
Só com noites
Teu alimento
Onde voas e cantas
Em delírio

De Lado


Os lados
De mim
Da lua
Da rua
Do rio
São partes
Fases
Paredes
Margens
Que dão a sombra
A luz
O encosto
A segurança
Para que o todo que nos forma
Não se afogue
Ofusque
Disperse
E um lado em oposição ou outro
Nos complete
E nos justifique a imperfeição

DeMarcada


As feridas expostas
Com crostas de várias camadas, de anos, de dor, de sabedoria
Sangram a olhos vistos
As torcidas veias de liquido tinto
Que nem todos sabem beber
Transportam o doce veneno do ser
O código secreto da derme
Confusos sinais, marcas, vivências tão unas ..tão próprias e inconfundíveis
Só é desvendado a quem entender o monstro que lá se esconde
E é ao passar o limite da zona demarcada
Que nos libertamos
Como visão Divina
O momento, em que mesmo sem cortar os pulsos
Consegues ver a ferida que espirra
Manchando o branco papel de parede onde te escondes
Ou onde te deixas morrer
Depois do pacto de sangue
Assina-se
E ninguém mais poderá alguma vez entender
O contrato DesHumano que nos une

Figurantes


Eufóricos
Decorando os passos para evitar o erro
A expressão
O tom de voz
O simples gesto de colocar a mão no bolso
Antes da entrada triunfal
Nervosas bocas comem cigarros
Tomam-se calmantes
E gasta-se o espelho
Como se nada fosse mais importante em cena
Do que a nossa simples aparição em palco
No meio de uma multidão de figurantes
Cremo-nos importantes
Quase indispensáveis
Sem nós, nada seria igual
E sonhamos com as luzes da ribalta
O nosso nome em rodapé passeando vaidoso
E os aplausos
Que nos levarão em ombros
Até aos camarins
E ai
Não há flores nem pedidos de autógrafos
Fingimos nem reparar
Retocamos a maquilhagem
Aguardando que o pano suba novamente
Para que aos encontrões
Consigamos subir ao palco
Mais uma vez
Com o brilho nos olhos de actor principal

Shiuuu


Me encantan las palabras que no hablas
porque se puede traducir el silencio en tus ojos

Aguas furtadas


Em segredo
Subo as escadas devagar
E junto com as tuas memórias
Aguardo por ti
Chegarás à mesma hora
Como no dia em que não vieste
E eu ficarei sentada na mesma janela
De onde nada se avista
E vejo-te chegar por fim
Caminhando apressado
Olhas meio envergonhado
Receias saber-se de mim
Sobes as escadas com cuidado
Abres a porta sem barulho
E entre a luz e o escuro
Despes a roupa e sorris
Esqueces o mundo lá fora
E eu
Esqueço quem sou assim
Somos roupas do baú
Passado bem fechado
Fantasmas com correntes
Relíquias sentimentais
Juntos uma vez mais
Como quem ama a ilusão
Do sótão somos o chão
Que cobrimos de jornais
E na noticia recortada
Lê-se a morte dos amantes
Aqueles que fomos antes
E hoje uma vez mais
Damos a alma que pena
À carne que se consome
Morremos nos velhos beijos
Como só morre quem já morreu
O tempo não acontece
Ali nada nos julga
E nos teus braços me sumo
Na minha boca te afundas
E quando se abrir a porta
O mundo volte a nascer
Estarei na mesma janela
À espera de te ver
Chegarás à mesma hora
Como no dia em que não vieste
E nada disto aconteceu

Mãos


Queria-te falar das mãos
Aquelas mãos que não param enquanto falo e falo…
Aquelas mãos que seguram o cigarro como quem se agarra a uma bóia em alto mar
As que sorriem agitando dedos
As que apertam forte num momento em que só o silencio faz sentido
Queria-te falar nas mãos vazias que guardam tudo
O tempo…quando desenhavam casinhas e flores
O medo… quando erravam as contas
O prazer… de criança a enlaçar o pião
Queria-te falar das mãos que embalaram
Das que contaram tostões
Coseram botões e meias
Das mãos que afagaram rostos
Limparam lágrimas
Esconderam dores
Nas mãos que apertam num cumprimento protocolado
Das que acenam adeus para apagar distâncias
Das que lavam o rosto pela manhã
E olham-se meninas
Magrinhas
Finas
Das que ousaram remexer entranhas
Pariram amores e desamores
Plantaram flores
Fizeram de ninho
Queria-te falar das mãos
Com que expresso o que sou
E nem sempre as olho e as estimo

Braille


Quando o mundo cegou
E os sentidos enlouqueceram
Apenas um sobreviveu nesta história
E na ponta dos dedos
Não deixou morrer a memória
O toque
De visões ausentes
Traz o cheiro
A cor
O sabor
Ao mesmo tempo que o gemido
Da pele na pele com sentidos
Que ouso picotar em mim
Para reler tudo o que vivo

Basium 4


Quando te toco
Em dedos ágeis e longos
Sinto a pele estaladiça do desejo
Em criks pausados
Crescendo agua na boca
Antecedendo a dentada sonora
Que saciará a gulodice
A tua voz doce
Num canto de encantar serpentes
Entra por mim como açúcar em ponto pérola
E gota a gota
Forma a crosta crocante
Preparando os meus lábios para o beijo

O sentimento


Morreu na praia
Quando a onda mais ousada dele se enamorou
Já era aquela hora em que se deita o amor com o sol
E se levanta a luxúria com a lua
Na areia as conchas fechavam-se por saber ser tarde
Os búzios já não guardavam o som do mar
E as pessoas, essas fugiam à pressa para não sei onde
Para fazer não sei o quê
Porque tinha que ser
Mas ele ficara
Não temia a solidão
E ter aquela imensidão de mar apenas para si dava-lhe a sensação de ser realmente importante
O seu lugar não era a toalha
Nem junto à rocha
O seu lugar era o todo
A existência
Natureza pura
Agua
Luz
Sal
Terra
Fogo
E ele sabia-o, mas nem por isso se julgava capaz de abraçar tanto
E isso deixava-lhe um vazio no peito aberto
A sensação de poder, mas não ser capaz
O limite
Que não era dele…
De que serve então ser-se tanto
Se nos ficamos reféns ?
Naquele dia, especialmente naquele dia
Naquela hora
Naquele sitio
Sentou-se
Olhou o horizonte
Sentiu os grãos de areia a bater no rosto
Voando com o vento pareciam setas
A sensação de punição de um Deus qualquer
Fê-lo aceitar a dor de bom grado
E quando a onda mais ousada chegou
Deixou-se morrer na praia
E desde ai…ele vai e vem
Ao sabor da maré
Entre o sol e a lua

Assim fosse


A minha fé é profana
Sou crente demente
Santa insana
Creio no corpo que me purifica
Quando em seu nome meus lábios se abrem
E minha língua o ama
E de joelhos rezo
A palavra do meu senhor
Nas suas mãos me entrego
Sem temer a dor
E bebo seu sangue
Nos dias mais que sagrados
Penitencio-me
Por cada pecado
Na carne quente
Ardente
Gemo sorrindo
Sem pudor
Por ter o perdão do meu senhor
É assim na terra
Que parece céu
Sua fiel crente
Amante
Do seu nome
Do seu corpo
Do seu espírito
O meu é o seu desejo
Hoje e sempre
Ámen

Arte e manhas


Ela pedia palavras bonitas
Como só quem sente sabe dar
Desnudava-se na espera
E esse tempo ausente
Trazia o frio das palavras ocas
Quimeras
Não tremia
E sorria esperando outras que a soubessem cobrir com jeito
Junto ao peito
A sombra da primavera
Como ninho de andorinha
Que em voos partira
Vazio ficará
E ela aguardava sempre
No ventre presente
O quente de uma mão que desejava a hora
Em que a transformação do ser se desse
Como milagre do amor
Eterna
A sua nudez
Porque as palavras
Baralham
Partem
Dão-se
E só o pintor
A sabe completamente vestida de palavra bonitas
Invisíveis aos nossos olhos

Pintura: Armando reis

Aqui jaz o tempo morto


Morreram as horas
Algures
Alguém precisa de vir reconhecer o corpo
Antes que seja tarde
Mas desconhece-se que alguma vez as horas tivessem gente que as reconhecesse
Espera-se
Mais um pouco, dizem cientista preocupados
Disfarçam a certeza de ser em vão a espera
E o mundo ausenta-se
Num retiro negro de luto
Não há herdeiros
Não existe testamento
E apenas o vento…parece chorar
Especula-se sobre a possibilidade de existir uma vontade expressa em vida
Doar o corpo para a ciência
Ser cremado e lançado ao mar
Ou apenas talvez sepultado, como os mortos anónimos da vida
Abre-se uma porta da morgue
E entra um dedo inquisidor
E num gesto claramente indicativo da certeza que trazia
Aponta
E culpa
Todos os olhos são postos nas horas
Suicidou-se
Não aguentou a solidão
Falou a palma da mão
E de punho fechado
Todos os presentes contiveram a dor
E com pena
Fingiram escrever a certidão
As horas
Foram-se
E sem tempo para mais preocupação
Fizeram a cova
Enterraram caixão
Escreveram frases de promessas vãs
E horas mais tarde
Ouviu-se um pranto
Lento
Segundos passaram
E só eles choraram
As horas que se foram sem razão.

Doce


Salivas
Sorrindo olho-te
Num gesto lento cedo à tua tentação
E deixo que proves
Uma pequena dose
Do doce que o futuro promete

E com a ponta dos dedos
Toco-te os lábios
Suavemente
Deixando pequenos vestígios da possibilidade sonhada

De olhos fechados abres a boca
Como quem quer tragar a vida naquele instante
E ao som da minha gargalhada
Descobres
O pouco de tanto
Que no teu lábio lambes

Ópion...Opiu...Ópio


Como o ópio
O corpo da palavra em flor
O sexo
O amor
Droga dura que sustenta o insustentável ser
E em tempo de florir campos
Os poemas surgem primaveris
Pela ponta dos teus dedos
E da boca
O suco espesso
Em beijos que atordoam
Deixando loucas as palavras
Que escrevemos nos corpos
Euforia insana
Dependente
Do teu e do meu querer
Veneno que nos entra nas veias
Desde a primeira vez
Em que florimos um no outro
Como papoilas em campos de espigas ressequidas

Acordes


Sem pauta
Toque de ouvido
Notas soltas em vibrações na pele
E acordas
Em baixo… ventre
Deleitado
Nu(m) dedilhar constante
Quando ousei tocar-te
Em improviso

Viagens Interiores


Tirou o laçarote do cabelo
Limpou o nariz ao punho
Conteve o choro que queria rebentar apenas por medo
Vergonha
Impotência
Disfarçou as nódoas negras com maquilhagem
Cortou a trança
Fez e desfez a franja
Usou calças velhas como novas
Fez equilíbrio em saltos
Julgou-se trapezista
Pensou-se mulher
Fez-se mulher
Um dia
Não marcado
Não pensado
Não escolhido
Fez contas de cabeça
E somou tudo o que a fazia assim
Pelo que lia
Sabia
Conhecia
Ela não encontrava respostas
Não se sabia descrever
E não entendia porque não era ela o resultado das somas
Dava erro
Sentia-se constantemente a mudar
Uma revolução no estômago
Uma tontura
E pensando cair das alturas
Depois de mais um numero arriscadíssimo no trapézio
Limpa o nariz ao punho
E ajeita o laçarote no cabelo que acabava de entrançar

Capricho/a


O teu olhar
Em tons de terra húmida
Que de baixo para cima me fixa
Rasteja
Como bicho felino
Num ágil movimento cheirando a presa
O teu corpo
De pele trabalhada à mão
Desfaz-se em líquidos
Sem represa
A tua voz
Rugido
Em código só por mim decifrável
Faz eco
Dentro da minha boca

Pulso


A revolução
Faz-se no punho
Com que esmago o estômago
Com o ódio quase amor
Ou vice versa
Ao mesmo tempo
Que aperto o coração
Para que não bata descontroladamente
Por medo ou…paixão exageradas
Resta a raiva
Que se desfaz em sabedoria
Só se conseguindo ver na mão aberta
Quando conseguir deixar de travar batalhas desnecessárias
E só depois o destino fica traçado
E será certeiro

DesPrazer


Desconheço as regras
Os traços contínuos são invisíveis aos meus olhos
As noites nem deviam existir
Só lhe vejo a luz que cintila e me chama
Apetecia-me partir
Agora de mala feita e desfeita
A casa faz eco de tão vazia
E eu grito baixinho só para me ouvir ao longe
De tão desconfortável
Sinto-me como sempre sonhei
Completamente perdida e entregue exclusivamente à minha vontade e indecisão
Indomável
Renego traços que possam conferir destinos
E faço palavras cruzadas em que faltam sempre letras
Apenas para não encontrar as respostas que todos esperam
As rosas secaram na jarra
E mantêm-se intactas
Sorrio
São lindas
Natureza morta
Literalmente morta
Sorrio novamente
A sangrar depois de me picar numa delas

Basium 3


No meio da rua
Em frente à multidão
Um beijo assim e somos felizes
Não?

Basium 2


Há um jeito
No beijo inesperado
Que faz do acto
Um momento inesquecível
E arriscado

The show must go on



A palavra que forma o pensamento, é ópio.
Os mais dependentes, sucumbem facilmente à ganância do conhecimento, por só este dar a verdadeira liberdade.
Nenhum Homem ignorante poderá ousar sequer, castrar-te o pensamento…por isso castra-te apenas a liberdade de obteres a capacidade de ser feliz.
Dementes, buscando nos bolsos migalhas…nos fatos feitos em série..padrões que fazem moda nas ruas alcatifadas.
Corpos doentes em mentes decapitadas, decoram montras em qualquer estação…
E mentes…mentirosas mentes…formando pares.
Ludibriando a pura loucura, do individuo que marginaliza a própria sombra…por medo de si.

Basium

Temporariamente
Ouso passar-te a língua
Nas palavras que transpiras
Nessa viagem revisito o tempo
Lento
E sei o sabor de cada minuto em ti
Corro pelo mar de sal
Nos pés descalços na tua praia
E salivo ondas na maré que vai e vem
Num movimento controlado
Sem luas
E abro as sílabas na tónica sem acentuação
Quebrando o gelo com os dentes
Dormentes




Temporariamente
Passas a língua em mim
Sentes o frio em arrepio
Quente na passagem frequente
Mordes amoras
Colorindo os dentes
Lambes entranhas
Afogando gente
Passas e repassas as feições
Que em liquido convertes
E em suspiros evaporas

Era uma vez...


As histórias já foram todas contadas
Comecemos de novo e para que se retenha o essencial…

“Era uma vez
E foram felizes para sempre”

Tudo o resto é pura especulação...

Frágeis



As palavras estão tão gastas
Que receio quebrar a crosta fina que as sustenta
Mal lhe toco agora
Olho-as desejando tocar-lhe como antes
Não me atrevo a assumir nas minhas mãos o seu ultimo momento
Nem na minha boca o seu ultimo suspiro
Fomos cruéis com elas
Ao ponto de as deixar assim fragilizadas
Queremos-lhes tanto…ou tão pouco
Que esquecemos de cuidar delas
Violamos-lhe a origem
A sua pura casta
E depois vestimo-las de histórias
De memórias
De fantasias
Sentimentos
Inventos
Desejos
Egoístas e cegos
Manipuladores
Descrentes
E agora quase a ficar mudos
Seremos igualmente surdos
E cegos
Conta-me uma história
Pedimos…
Não fosse ter manchadas as mãos
A língua morta
Nem pesada a consciência
Contaríamos como outrora
E assumiríamos a culpa de nada soar como antes
Quando as palavras eram virgens nas nossas bocas
E a sua verdade era única
Todo o encantamento se quebra agora
Mal lhe toquemos com a ponta dos dedos
Ou com a ponta da língua
O que resta
É um sabor a ausência do valor das palavras
É acto de amor pago à prostituta
É paladar de algodão que já fora doce
Restos
De papeis assinados à mão
Ou marcados com impressões digitais
Vivas.
Agora
Morrem-nos
Nos dedos nus
Sem papel
Sem laçarotes nem rendas
Decalcadas de boca em boca
Não fosse ter receio de quebrar a sua crosta fina
Diria ainda…tanta coisa que ficou por escrever.