Com_traste

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sábado, 27 de fevereiro de 2010

NOTICIAS DE ÚLTIMA HORA...


Decorriam os dias com a natural languidez
Passavam as horas com a normal batida cardíaca
Nada de novo
Nem no jornal dos boatos da região
Os acidentes eram todos iguais aos de ontem
As mortes já aconteciam assim há muito
Contavam que havia a suspeita da existência de um ser estranho nas redondezas
Mas era noticia por confirmar..também esta já não era nova
As estradas iam para os mesmos locais de sempre
Até a chuva já era a água que antes servira de rio
Ainda olhou com mais atenção o céu daquele dia mas..falso alarme
As nuvens entretinham-se a fazer de conta que eram sonhos de algodão
E o sol continuava a parecer um girassol gigante
Sentou-se no único banco de jardim que conhecia
Já lhe falaram da existência de outros iguais aquele
Mas ele tinha serias dúvidas que fossem assim..
De madeira pintada de verde e com os pés firmes num canteiro de lírios roxos
Sentado ali avistava ao longe a única montanha daquela zona
Ainda se recordava dos tempos em que ela era mesmo grande
E de como ao longo dos tempos, ela fora parecendo cada vez mais pequena e mais longínqua
Agora sorria
Talvez seja esta a única coisa que conhecia que se modificara com o passar do tempo
O tamanho da montanha lá longe….e a distância do longe.
Tirou as mortalhas e o tabaco do bolso
Enrolou um cigarro com todo o tempo que é necessário para o fazer
O espalhar do tabaco na mortalha com o gesto final da ponta dos dedos
Assim como quem limpa um no outro, o que resta ..para que nada se perca
Depois, o passar da língua húmida no papel, lenta…mente…
Tão lentamente que parece seca a língua quando chega ao fim
E só depois tirar o fósforo da caixa e escutar o rasgar da chama no silêncio.
Mesmo sem vento a mão protectora forma concha
E a chama aguenta-se até pegar fogo ao cigarro
O primeiro sopro é de um prazer único
Só ele sabe o quanto deita fora naquele momento
E ao mesmo tempo estende-se no banco
E olha os sonhos de algodão mais uma vez
Já não pode escutar a novidade do dia
Sairia em todos os jornais
Teria direito a reportagem televisiva
E andaria de boca em boca como o espanto
“Fora encontrado o ser estranho que há muito se suspeitava existir. Num banco de jardim foi descoberto um corpo, parecia humano mas aguardavam-se os resultados dos cientistas. Tinha nos olhos dois girassóis e algodão no lado esquerdo do peito. Nas mãos ainda ardia um papel, suspeitavam ser a tentativa de destruiçãodas provas da sua identidade. “
Continuaram as noticias sobre tão incrível descoberta, além dos rumores normais nestas ocasiões, mas com o passar do tempo, o banco do jardim dos lírios roxos, passou a ser local de visita obrigatória, todos queriam ver o local onde morreu a coisa a que deram o nome de SOLIDÂO.
Desde esse dia, há enormes suspeitas que haja mesmo outras vidas para alem das nossas e que existe a possibilidade de estarmos a ser invadidos sem darmos conta.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Marca..dor de tempo


Coloca-se na porta o aviso de “ocupado”
Deixando no leito a marca do corpo que não dormiu
No livro que nunca se lê, dobra-se o canto da pagina
Uma qualquer…
No porta luvas, o mapa das viagens em sonhos
Com círculos vermelhos nas cidades escolhidas para…um dia.
Na estrada ainda molhada, os pneus deixam para trás os centímetros feitos em alta velocidade
E na máquina fotográfica as imagens sucedem-se em click automáticos.
Guarda-se os pincéis do artista, a tela ainda intacta e deitam-se pelo chão as aguarelas em tons anil e pelo tecto os tons de terra prometida.
No sótão, uma guitarra encostada como corpo de contornos nunca tocados com todos os dedos
Ouve-se ao longe as melodias ainda nunca compostas
E os discos de vinil servem de pratos rasos para a ultima ceia
Uma base para copos junta-se à colecção de selos
Das cartas que nunca se escreveram, dos copos que nunca se beberam…
Num baralho de cartas viciadas
A marca no Ás de copas é invisível aos olhos do craque
Perde sempre no jogo para poder ganhar no amor
O corpo ainda dorido da ultima queda livre
Na radiografia ostentando os ossos deformados
Serve de prova para a identificação do futuro cadáver.
Sinais do tempo na pele enrugada disfarçam os sinais de nascença, impossível a identificação com ele próprio.
O carácter nem sempre definido, dá lugar à falta de lucidez e a descontos na factura do supermercado da esquina.
A mulheres que foram da vida, da sua…
Ainda bailam no corredor do tempo que perdeu.
E no salão forrado com papel de jornal antigo
Serve-se o chá das cinco com adoçante pouco natural
Nas bolachas sem sal, chora em silêncio a dentada estaladiça
E no sofá de couro velho, senta-se uma alma marcada…
Tocam à porta, e como sempre é o carteiro sem noticias
No bom dia, dito em tom de viola baixo
As cabeças erguidas olham o chão para disfarçar o silencio que vem escrito na carta que passa de mão em mão.
A marca da dor em cada marcador deixado por ai
Fará abrir o livro no lugar incerto
A porta na hora de saída
A carta sem papel nem cheiro
A caixa das jóias prometidas…
E no testamento inventado, deixará aos seus deserdados
A marca de água da vida…invisível aos olhos nus.
E no lacre de beijos queimados
Sela pactos de sangue lambendo os dedos picados
Na única rosa branca que nascera sem espinhos.
Com marcadores criado em palavras que nunca escreveu
Qual banda desenhada, sem balões de fala nem de pensamento,
Foi assim criado o super homem dos sentidos
Um dia ainda inventará Deus e um tempo em grãos de areia escorrido

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Venham mais cinco...


Quando a realidade aparece turva
Quando falamos e ninguém nos entende
Destilamos os venenos que nos consomem dia a dia
E fazemos revoluções num copo de vinho
Falamos para nos ouvirmos
Com uma certeza momentânea de verdade
Achamos todas resposta em nós mesmos
Somos ditadores da palavra
Do sentir…
Como se atrevem a não pensar como nós?
Que loucura a deles ao dizerem o que dizem..
Nada faz mais sentido do que a nossa visão das coisas
Vamos ao cume da satisfação egocêntrica quando não obtemos resposta ao que questionamos
Sentimo-nos grandes
Donos da verdade
Choramos indignados quando os outros dizem barbaridades
Dói sentir que naquele momento poderíamos ser o rei
Mas que insistem em não nos seguir
Está tão claro para nós…
Naquele momento somos toda a verdade
E ninguém nos segue…
Porquê?
Pedimos mais um copo
Pode ser que a realidade mude antes que acabe o vinho.
Depois?
Resta-nos a rua com calçada incerta
Para que possamos culpabilizar os outros
Dos nossos tombos
E no dia seguinte sentir que algo aconteceu ali
Mais uma vez não fomos nada mais que
Bebedeiras inconsequentes
Revoluções em copos de vinho
E ainda esperamos mudar o mundo?
Mais um se faz favor…
Cheio e fresco
Para que adormeça a certeza da realidade.
E da nossa incapacidade enquanto sóbrios …

transplante de pele...


Na ponta dos dedos o transplante
Da pele outra nas minhas mão
Digitalizada na alma
Saboreada na língua
Pinturas rupestres
Nas costas
Asas feitas de papel de rebuçado
Pegadas em lençóis molhados
Figuras recortadas em almofadas de cetim
Teatro de guerra corpo a corpo
Comando à distância na voz
Festim de gulosas bocas
Ninho de aves loucas
Cama
Chão
Mesa
Silêncio
Acção
Sonolência
Pão
Frutos vermelhos
Torradas na palma da mão

Acordar de novo
E sentir dormentes ainda os teus nos meus dedos
Pintar a unha do dedo com mel
Saborear o néctar da tua pele
Beber o verde dos olhos negros
Frescos os beijos nos lábios rubros
Mastigando o suco do fruto em gomos
Deixando pelo chão as horas
Sendo noite com dia lá fora
E voltando a desfazer a casa
A cama
A vida
A pele
Para depois no fumo de um cigarro
Intoxicar a incerteza do amanhã
E em cada toque de cada um dos nossos dedos
Deixar a marca da alma do outro
Documentos nunca mais identificados
Somos dois mas baralhados
Resta-nos
Rasgar a foto do papel
Falsificados..dirão os outros
E nós passaremos fronteira sorrindo
Mostrando a ponta dos nossos dedos como prova
Da nossa identidade…comum!

nº 554


Havia uma janela junto à cama
Tinha a certeza de já ter espreitado por ela muitas vezes
Era de madeira, pintada de branco
De vidros cristalinos quase inexistentes ao olhar
De cortinas soltas, brancas com rosas amarelas
Com uma fita verde a enlaçar as pontas
Havia uma janela junto à cama
Tinha a certeza!!
Lembrava-se ainda dos dias da chuva que salpicava a vidraça
Em que desenhava nuvens e cavalos voadores
Quando aproximava a sua respiração quente
transformando a janela em ardósia de sonhos
E quando o vento uivava fazendo bater a fechadura
Frágil e insegura
A um ritmo assustador
Lembrava-se de ter desejado um vendaval em cada batida do coração
Para poder lançar-se em voo livre com as cortinas como asas
Havia uma janela junto a cama,
Tinha a certeza!!
Recordava o ultimo verão
Em que o calor dilatava os poros
E a madeira ressequida fazia estalar a tinta
Mostrando a madeira bruta de que era feita
Com marcas de pregos já despregados
Com frestas a deixar passar a luz
E de como se mantinha fechada para que não entrasse o calor abrasador
Era uma janela pequena
Mas existia ali junto à cama desde sempre
Tinha a certeza!!
Do lado de fora a paisagem mudava como nos filmes…
Ora deserto
Ora oásis
Ora um corrupio de gente a andar sem direcção aparente
Ora um largo de aldeia com a igreja no meio, a badalar horas passadas.
Tinha dias em que via o rosto de uma mulher a espreitar pela vidraça…acenava e partia sempre…trazia um vestido branco com rosas amarelas e uma fita verde a enlaçar os cabelos negros.
Era o nº554 e o único com permissão para ter em seu poder um lápis de carvão e sonhos…cediam sempre um ultimo desejo…

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Tem gente? Não, tem Bicho!


Enquanto aguarda o tempo
Ousa respirar em pequenos sopros
Contemplando o interior do pensamento confuso
Ao mesmo tempo que se surpreende com a realidade exterior
Reencontra-se na imagem interior de si mesmo
Nada faz mais sentido que a desorientação de um pensamento
Em labirínticos recantos
Perde-se do que pensa pensar
Encontra-se naquilo que nunca imaginou
E dessa catástrofe surge a esperança
Num sorriso único de vitória
Afinal é isso que todos somos
Um pensamento que um dia surge em nós pela primeira vez
Um sopro de tempo antes de acontecer o tempo
Uma possibilidade
Uma descoberta
Um crime sem pena
Um ser que nunca se saberá completamente
Mas que ousa ser sem autorização divina
O bicho da maçã …

Espera ainda calçado...


Esperava

Já há algum tempo que era assim a espera…
Serena e simultaneamente inquieta.
Só o pensamento e o coração sabiam o seu segredo
O rosto e as mãos ilibavam-no da culpa.
Poderia haver um vendaval que as folhas do jornal, que diariamente folheava, nem mexiam.
Apertava a mão, aos que com ele cruzavam, com a firmeza dos homens calmos e seguros.
O espelho que o enfrentava todas as manhãs não poderia culpa-lo de nada…
Ele nem pestanejava ao desfazer a barba, nem mesmo quando acidentalmente se feria..
A mão segura, por vezes distraia-se com o pensamento inquieto,
O espelho ria
Mas ele deixava calmamente sangrar a ferida e controlava a dor.
Franzindo a testa, deixando o sobrolho momentaneamente recordar outros tempos…quando ainda se mostrava inteiro.
O dia corria com a normalidade de sempre
De fato e gravata, sapatos pretos de cordão bem apertado, seguia como se o tempo fosse todo dele…o mundo fosse dele…
A rua barulhenta e suja não o assustava, caminhava de olhos postos no horizonte limpando os sapatos de cada vez que um grão de pó os sujava.
“Ninguém caminha como tu”
“Parece que danças…”
“gosto tanto dos teus sapatos”
Parecia ainda ouvir a voz dela..
Era assim desde aquele dia em que o amor o deixou
Ela dissera:
“Eu volto!”
E ele deixou-se na espera ficar calçado.
Parece que não envelheceu, nem sabe ao certo há quanto tempo foi.
À noite, quando se deita apenas porque tem que descansar o corpo, o pensamento enrola-se em cada batida do coração
O coração aperta-se em cada pensamento dela.
A certeza da sua existência transformaram-no ..agora é sempre assim…um homem com um belo par de sapatos nos pés.
Na cadeira ao lado, o fato e gravata para o dia seguinte.
Tudo no lugar certo
Os sapatos nos pés…nunca se sabe quando ela irá chegar…
Dorme calçado para não perder tempo…e poder dançar novamente como antes..assim que ela chegue e o olhe.
Ele espera voltarem a ser…
Quatro pés e dois sapatos pretos.
Era nos seus pés que ela se calçava para dançar…terminando sempre num beijo