Com_traste

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segunda-feira, 19 de outubro de 2009

A GAVETA DAS ESTÓRIAS


A gaveta das estórias...


Os dias ficaram subitamente mais pequenos, começara a amanhecer com menos luz e com uma aragem que dava um arrepio bom na pele.

As noites, essas seriam tão longas como as saudades das noites à lareira, como a manta quentinha feita de restos de lã pela minha avó Luísa, como as tranças negras que eu tinha em criança e que enfeitava com pequenos laçarotes nas pontas…

Era aquele tempo de fazer arrumações, de trocar as roupas frescas pelas quentinhas de Inverno, de agasalhar o corpo e alma para que não passassem frio…era aquele tempo.

Sem perder tempo comecei pela Minha cómoda.

A cómoda não era uma cómoda qualquer. A Minha Cómoda era uma cómoda enorme, feita de madeira robusta, tinha um tampo em pedra mármore onde desfilavam retratos de todos os rostos com nome que fazem parte de mim.

A cómoda tinha muitas gavetas, umas grandes, compridas e fundas que guardam as coisas maiores. Depois tinha gavetas médias, de tamanho adequado para as coisas assim-assim. As gavetas mais pequenas eram quatro, umas cheias de coisas pequeninas, mas não menos importantes, outras cheias de vontades…apenas.

Retirava as coisas grandes das gavetas grandes, com tempo, muito tempo…olhava e voltava a olhar, limpava cuidadosamente cada recanto de cada gaveta antes de as voltar a encher com as coisas grandes. Algumas dessas coisas grandes eram antigas, outras havia que foram parar ali há bem pouco tempo…apenas porque o seu tamanho exigia uma gaveta assim.

Nem sempre me lembrava das coisas grandes que tinha nas minhas grandes gavetas da cómoda. Talvez a certeza da existência delas me fizesse por vezes esquecer da sua importância. Só naqueles momentos em que as olhava mais cuidadosamente, as cheirava e acariciava com ternura, me vinha à memória todas as estórias daquelas minhas coisas, todas as coisas grandes que aprendera com elas, todas as coisas muito boas e todas as coisas muitas vezes também muito más…mas eram todas as minhas coisas grandes! Depois, fechava as gavetas grandes das coisas grandes e sorria, jurava sempre revelas no dia seguinte….

A seguir abria as gavetas médias das coisas assim-assim. Tinha piada ver que algumas delas seriam do tamanho da gaveta grande, mas como eram de fácil arrumo, podiam ser dobradas, redobradas, apertadas e aconchegadas sem perderem nunca a forma nem as qualidades, eu aproveitava e colocavas ali, perto das coisas assim-assim. As coisas assim-assim eram coisas normais, tinha vezes que até pensava ter guardado só por guardar, outras pensava sentir a sua falta e sorria por as reencontrar ainda.

Dentro destas gavetas tinha ainda o meu primeiro beijo..nem sempre o guardava na gaveta certa…nem sempre o sentia do mesmo tamanho. Hoje reencontrei-o dobrado e encostado ao lençol de linho que a minha avó bordara em pequena.

Há memórias que se juntam como por acaso…só como por acaso…

Nas gavetas pequenas demorava mais tempo.

É incrível como há coisas e coisinhas, quase sem tamanho mas que demoram uma eternidade a arrumar, limpar e tratar. Era a caixa dos botões de punho, a caixa da costura com agulhas, linhas e dedais, o saco das coisas velhas que algum dia serviriam para alguma coisa, quase de certezinha!! Papéis e mais papéis já sem letras muito visíveis, cartões fora de prazo, cartas, postais e fotografias de outros tempos. Tanta coisa pequenina nas minhas gavetas pequeninas! Quase me esquecia de arrumar as outras gavetas pequeninas, aquelas só cheias de vontades…abri apenas para que entrasse um pouco de luz do dia, arejar para que não ficassem com cheiro a tempo. Depois voltei a fechar..estavam meio perras mas com jeito consegui, fecharam sem fazer muito barulho, era boa aquela madeira da minha Cómoda.

Por fim sentei-me a olhar para ela. Olhava e voltava a olhar, depois de tudo arrumadinho no seu lugar.

A sensação de dever cumprido enchia o peito e dava aquela segurança no olhar.

Era bom ficar com a certeza que todas as coisas estavam no lugar certo, tudo no seu devido lugar!

Depois limpava o pó aos retratos dos rostos com nome, aqueles que ficavam em exposição diária, que traziam história às minhas estórias e ficava ali a olhar demoradamente para a Minha cómoda.

Depois pensei: É muito Cómodo ter uma Cómoda assim…


Abri a janela e ainda cheirava a primavera…