Com_traste

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terça-feira, 28 de dezembro de 2010

MaCabra


Segue-me o reflexo do espelho que olhei esta manhã
Tento disfarçar o medo
Não olho para trás mas sinto-o
Cada vez mais perto
Cruzo-me com alguém a quem tento pedir ajuda
Mas não me olha nos olhos
Viro na próxima esquina, penso
Mas ao mesmo tempo a rua parece infindável
Apresso o passo e tento chamar um táxi
Corro em direcção ao meio da rua e as buzinas assustadas invadem os silencio da tarde
Recuo um passo ao mesmo tempo que escuto o som de uma travagem a fundo
Ao longe o som de uma ambulância aproxima-se em segundos
Chegam rostos que se vergam aflitos tentando saber se a vitima respira
Eu quedo-me presa às riscas brancas no preto da via…se me mantiver aqui talvez me ilibem de culpa
De repente alguém vem na minha direcção abanando a cabeça
Nada a fazer, disse.
O motorista do carro acidentado leva as mãos à cabeça como que negando as evidências
O policia anota algo e pede-lhe a identificação
Não me mexo, agora não posso!
Alguém se afasta e deixa um espaço por onde se pode ver os restos
E consigo ver ainda …com vida
O reflexo em agonia no chão
Faltam-lhe partes
Mas mesmo assim…olha-me como se quisesse mostrar o rosto da culpa
Não senti nada
Apenas alívio por me livrar da pena… de prisão perpétua.

Ora BOTAS!



Agora calo-me
Já não me apetecem as palavras
Fechada no espaço de quatro paredes negras
Alem do vazio, uma única cadeira espera alguém
E eu sento-me
Não sei onde colocar as mãos…junto os joelhos e abraço-os
Está-se bem assim
Comigo e a minha ausência
Não precisamos de apresentações
Nenhuma das duas espera nada
Só estamos…
Recuso-me a responder às minhas perguntas
A ausência de mim sorri
Chama-me teimosa
Continuo sentada abraçando as pernas
Cobre-me um vestido preto muito curto
Descalça e sem nada mais a cobrir o corpo
Não sinto frio
A ausência de mim está vestida de branco
Acho que gosta de cores claras
Somos muito diferentes…sempre o fomos, penso.
Nos pés traz umas botas pretas que lhe vestem as pernas também
É bonita
Olho-a e desejo-a
Nunca tinha sentido algo assim e coro
É ela que dá o primeiro passo na minha direcção
Acaricia-me a nuca
Fecho os olhos..inclino a cabeça
Volta a chamar-me teimosa…tento mas já não consigo ripostar
Sinto a ausência entrar em mim
Com a língua em voltas soltas pela minha boca
As mãos continuam a afagar-me os cabelos e sinto-me tonta
Despenteada, ofegante, suando …
Sinto que me puxa para ela, deixo-me ir sem abrir os olhos
Juntamo-nos
Sensação única a junção de corpos iguais
Diferem na cor …apenas
E obrigando-me a abrir as pernas, sinto o couro frio das botas altas na minha pele
Arrepio-me com o deslizar no seu joelho nas minhas coxas
Cheira bem..junto o nariz ao seu cabelo que agora me cobre o peito
Abraçamo-nos e em silencio deixo-a entrar em mim
Quedamos assim largos minutos..desperto como que anestesiada
Abrem a porta e alguém entra
Não me mexo
Seguram-me o pulso e oiço uma voz em eco:
Nada, não se sente nada.
Alguém do outro lado responde:
Está assim sentada desde ontem…nua e de botas calçadas.
Loucos!
Dizendo isto…saíram.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Cansaço...



Acordou cansada
Era um cansaço novo nela
Não doía nada de físico
Não sentia tristeza ou angústia
Era ausência
Nada mais que ausência
Era como se planasse sobre o próprio corpo
E o visse vazio de si
Sem expressão no rosto
Nem aquele brilho nos olhos que a tornavam criança
O ar reguila de sempre fora-se
Não sentia nada
Rigorosamente nada
E isso só poderia ser cansaço de ser
Era sempre tanto…sempre mais do que devia
Deitou-se de novo no seu corpo
Tocou-se para comprovar os sentidos
Os dedos que foram sempre de outros
Naquele momento eram apenas seus
Sentia-os mais fracos, magros e inexperientes
Tentou em vão todos os pensamentos de antes
Aqueles lhe davam vida cada vez que morria de desejo
Mas agora os dedos eram dela
Os pensamentos fugiram para um outro lugar qualquer que não o seu leito
Tantas vezes que se deitaram com ela e agora sentia que nunca lhe pertenceram
Ausência
Só ausência e um afago dos seus dedos

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Calem-se


Calem-se!
Eu desisto de me tentar convencer que as coisas são outras coisas
Que a existência de palavras são algo mais que isso
Sentem-se no momento…e dizem-se
Desisto de lhe querer dar vida depois de ditas
Ploff…parece que as estou a ouvir…
São como o álcool do vinho que me atordoa
E eu tonta …deixo-me ir atrás delas
A cabeça é algo que meu corpo não possui
Vejo-me do outro lado a sorrir à bailarina desnuda que teima em rodopiar
E depois torna-se eco
O pensamento repete sistematicamente as palavras que já não soam
Decapitação deveria ser a pena da morte que nos espera
Porque só matar as palavras nos silêncios, não basta
Se alguma vez as ousamos dizer, é como se lhes déssemos a eternidade
E condenássemos à morte lenta o receptor
De uma vez por todas desisto das palavras criminosas
Não apelo mais à humanidade dos que as podem salvar do seu destino
Que se danem!
Matem-se!
Morram todas as palavras perigosas
Que me fazem ficar louca por engano
E depois disto peço um copo
Do vinho que me torna menos pura
E podem gritar o que quiserem
Já nada poderei escutar que sinta
E antes que seja decapitada
Tapo o poço para que o eco não me minta.

sábado, 11 de dezembro de 2010

HORAS PERDIDAS



Passaram as duas, as três..e tantas outras horas que não senti
O tempo já não me fala como antes
Mas passa, sei que passa pela sombra que fica no corredor
A ligação de todas as coisas…com portas que se abrem e fecham
O pó tapa as marcas dos passos e as dedadas nas paredes
As portas que rangem, deixam-se ficar abertas para evitar constrangimentos
Ou pela ausência do som
Ou pelo exagero do mesmo
Disfarçam assim a quantidade de entradas e saídas
Há ainda as outras…as que é necessário deixar impressões no puxador
Evitam sempre a falta de provas, por serem talvez as mais experientes
A vida de uma porta não deve ser fácil…tem visão para os dois lados da casa
E acredito ser muitas vezes difícil saber a qual lado pertencem.
Mas é a sombra do tempo que agora me prende
Olho-a e pergunto-me porque ficara assim
Não me fala mais como antes
Arrasta-se preso a mim como se me fosse algo
Mas já não se importa muito comigo
E eu não sei o que lhe fiz…
Talvez tenha sido a falta de atenção que dei aos pequenos minutos
Ou a hora que perdi a pensar …
Só sei que também eu em tempos o sentia diferente
Era como se fosse mesmo meu
E corava só de saber como me poderia sorrir…um dia
Em pequena queria que ele me tomasse mais rápido em seus braços
E ficava louca se me diziam para esperar...
Dar tempo ao tempo sempre foi algo que não entendi
Contradição dos diabos que me fazia perguntar constantemente Porquê…?
E a resposta era um fora de tempo qualquer…num sorriso protector de quem me julgava louca
Depois enamorei-me dos pequenos nadas que me trazia ao fim da tarde
Era mesmo bom ser amante do tempo!
Agora jaz ali no corredor feito sombra
Sei que é ali que se espera pela hora…
Do parto
Da decisão dos outros
Do carteiro que tarda
Da opinião do médico
Da chamada…certa
Da morte
Mas será que não sabe que já não há tempo para esperas?
Porque me segue ainda assim, parado, quando eu já há muito que o deixei livre?
E se ainda me quiser como antes?
Ah como eu daria horas de vida para saber ao certo…
Que horas são (?)

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

...





E agora?
Esquecemos das letras todas que nos formam
A caligrafia morreu no tinteiro
De pena
As mãos nos bolsos disfarçam os gestos automáticos de carregar em teclas
E estas ciumentas vingam-se contando ao mundo os nossos poemas
E eu já não sei quando foi a última vez que me falaram de amor…
E agora?
Procuro a folha de pauta
Enroladas as notas de música
Leio todas as letras que me tocam
Nos compassos lentos, divididos em tempos íntimos
Soletro o solfejo dançado na mão em concha
Depois em crescendo
Aumenta o ritmo harmonioso
Sem dó, a mínima na linha mais grave de mim
Baloiça
E antes que as cordas vocais me sufoquem
Nas palavras que não digo nem escrevo
Termina a peça num andamento imposto
Pelas mãos que comandam à distância o sentimento
E eu já não sei quando foi a última vez que me falaram de amor…
E agora?

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Nenhures...


A estrada parecia não ter fim.
Caminhei noite e dia com a certeza de que ela me levaria lá.
Andei, corri, volta e meia descansava na berma, pouco tempo quase nada..
Continuava, sempre em frente, olhando o horizonte que mesmo à noite o luar se encarregava de iluminar, por fim cheguei lá.
Não sei porquê, parei antes do ultimo passo.
Já era dia, finalmente uma mão prendeu a minha.
Ficamos assim…juntos na berma do caminho, a um passo de Coisa Nenhuma.
Não deixámos de olhar o vazio, ou melhor, coisa nenhuma.
Demos o ultimo passo com a certeza que nenhum dos dois existia.
Alguém escreveu mais tarde uma tabuleta que colocou naquela estrada dizendo :
Caminho sem saída!
Nunca mais ninguém, que queria chegar a algum lado, caminhou por ela.
Mas eu sei o caminho para Coisa nenhuma.
E escreveram-se letras de canções, músicas para poemas sem rimas, contaram-se lendas e inventaram-se palavras, mas nada conseguia descrever Coisa Nenhuma.
E os poetas insistiam, os músicos teimavam, os inventores enlouqueceram…
Nada, Ninguém, Nenhures, só em sonhos se pode descrever.
Mas eles nem sonhavam.
Foi então que alguém (Deus ou o macaco) se lembrou de escrever na tal tabuleta :
Caminho sem saída só para alguns!
Desde esse dia todos seguiram para Lugar Nenhum.
Hoje ainda ninguém sabe se esse lugar existe.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

OSSOS DO OFÍCIO



Arranham-me as entranhas
É a partir de dentro para fora que me matam
Facas afiadas de mãos invisíveis
Pouco a pouco
Despedaçam-me os órgãos
A principio só uma dor leve no coração
Normal para quem ousa usar o órgão para algo mais que batidas ritmadas
Depois uma cólica que enrola o estômago em volta de um vazio
Engulo um naco de pão à pressa, tento acalmar a dor
Até as pedras, pouco preciosas
Desfazem a murro
Causando um golpe de rins, que tento disfarçar em movimentos dançados
O fumo já não me causa manchas nos pulmões
Sopram ventos de todos os lados
Com drogas outras
Menos puras e de cores psicadélicas
Dilatando-me o peito prestes a rebentar
Respiro ofegante…ainda
O cérebro apertado pelos pensamentos confusos
É banhado por líquidos pegajosos
Parecem rios poluídos
Uma tontura em cada novo pensamento
E um sentimento
Em fuga do coração, acumula-se nas margens
Pouco resta de dentro que possa ser transferido
O sonho da doação do pouco que julgava puro
Morre antes de mim
A boca seca-se
Já não há palavras suculentas
Nem excitação possível que me faça salivar
Antes, era um mar nos sonhos de libido louca
A língua torna-se branca
Áspera
Soltando palavras ao acaso
Todas elas cruas
Impuras
Ordinárias
Perdi o sentido dos sons
Agora são barulhos horríveis,
Só escuto por mero caso
Volta e meia captando a onda em que os emitem
Completamente dessincronizada
Repito ruídos tentando voltar aos primórdios
Em que aprendemos por imitação
Os olhos cegam
Por a luz vir de dentro
Como raios
Visão raio x
Deixando todas os outras letras por decifrar
E o negro da menina
Que antes sorria no reflexo
Confunde-se com o negro do vazio
Mas ainda cheiro
Chegam a mim todos os aromas de antes
É como se ele me trouxesse todos os outros sentidos
E desse vida a todos os órgãos desfeitos
Mas receio o tempo que escasseia
Impaciente pelo cheiro das madrugadas em que se coze o pão
Alongam-se as tardes secas
Nunca mais chove para que me devolvam o cheiro da terra
As árvores engravidam por inseminação artificial
Propositadamente para que não sinta o cheiro dos frutos da época
E não voltam as primaveras
Foram no bico de andorinhas, há anos e anos
Nada resta do verão, não há mar de searas que ondulam
E eu ainda respiro… ofegante
A pele desnuda-me como se quisesse intimidar a vergonha dos outros
Enrola-se como os estores
E eu como janela entreaberta exponho-me
Resta-me ainda o ventre
Cansado de tantos partos
Mas fértil ainda
E antes que me matem tudo
Desfaço o resto das entranhas
Sangrando pelo sexo em gotas
O que nas veias acumulei em anos
E para que se saiba a causa do suicídio
Escrevo com a ponta do dedo
Na poça de sangue onde me findo
“Desisto de vos alimentar eu própria levo os meus ossos”