Com_traste

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domingo, 31 de julho de 2011

Ali...


Faltava-lhe o verso invisível que trazia sempre na ponta dos dedos
Aquele que se desprendia de si por quase nada
Um sorriso cúmplice
Um beijo
Um afago no pescoço nu
Ou apenas um pensamento…
E eram palavras soltas sem nexo
Eram versos
Ao inverso do que era
Antes, havia um lugar onde tudo parecia ser mais fácil
Um Ali
Em que as coisas lhe surgiam claras
Os sorrisos em turbilhão
Os olhos banhados num mar de felicidade por coisas simples…pequenas coisas
Naquele Ali…encontrava-se com todas as palavras que a formavam
E a conversa fluía solta
A vida era tão mais fácil Ali
Naquele Ali…aprendera quem era
Descobrira-se cheio de sede e fome de mais
Não que quisesse muito…mas nada lhe bastava
E sabia-se capaz de albergar todo o conhecimento, todas as experiências, todas as coisas
Mas só Ali
Naquele lugar onde brotavam os versos soltos dos seus dedos…

Homem Pássaro



O homem pássaro tem asas nos olhos
Peito sem pena pesada
Boca de colibri colorido
O homem pássaro voa como voam as aves dos meus olhos
Sorri como sorriem os beijos enamorados
Canta como as madrugadas primaveris
O homem pássaro é feito dos meus sonhos
Esconde-se na palavra que escrevo no tronco das arvores
Aparece cada vez que eu de mim preciso
O homem pássaro não tem ninho
É livre e solto como o vento
Voa em círculos enrolado no meu pensamento
E come todos os meus suspiros
O homem pássaro tem asas do tamanho do meu mundo imaginário
Crescem-lhe penas nos dedos quando me deixa
Chora baixinho quando me ama
O homem pássaro é eterno
Vive na minha vida
Até que eu me transforme em pássaro
E parta rumo aos seus abraços

Distraídos


O corpo estendido à horas a fio naquele chão
O cheiro era de um outro, entranhado
Desfaziam-se as carnes em pasta pegajosa
De cor ausente
Ninguém via, ou ninguém se preocupava
Como se fosse normal desfazerem-se corpos pelo caminho
Os insectos, os únicos com alguma consciência social
Zumbiam em redor do liquido
Fazendo o seu papel na perfeição
Uns morreriam ali, naquela praia
Por ser essa a sua obrigação
Outros, levariam nas patas restos
Fazendo mel fora da colmeia
Matando a gulodice dos menos diabéticos
Passarão anos…eternidades
E um dia morre também a saudade
Do corpo que ninguém viu

sábado, 30 de julho de 2011

Teste pouco científico


Acho que sou volátil
Tal como me sinto gasosa
Vapor de agua em borbulhar constante
Evaporação de essência
Com aroma de pele em orgásmicas destilações
Tantas vezes perdendo o essencial por entre os poros
Desfaço-me e refaço-me em transformações constantes
Regressando sempre á mesma forma sólida
Do que me fizeram..do que me deixei ser
A matéria inconstante que me forma
Ajusta-se ao objecto em que tem que se encaixar
Desde sempre
Um corpo que se ajusta num espaço imposto
Para poder sobreviver
Então entrei neste corpo humano de fêmea
Aconchegando o sexo à sua função natural
De virgem
De esposa
De mulher em duvida
De puta antes que seja tarde
E a capacidade limitada da forma
Ilude a capacidade ilimitada da função
E para que se cumpra
A ciência nunca comprovada da existência dos Homens
Fazem-se teste em tubos de ensaio
Variando a técnica e a experiência
Mas numa dessas ocasiões
Foi descoberta a possibilidade do ser se evaporar
Mantendo intacta a imagem
Ficando momentaneamente oco do seu ser
Invenção sem patente registada
Protótipo eu me sinto
Quando mais uma vez me evaporo por entre os dias…

Mantimento


Tenho-te sede
Engulo em seco os pensamentos
E divago no deserto da tua ausência
Hidrato-me com cheiro que de ti em mim ficou
Tenho-te fome
Mastigo as palavras que não digo
Como reservas, para talvez um outro dia pior
Alimento-me com tudo o que já vivemos antes
Tenho-te amor
E guardo-te como se guardam as coisas de valor incalculável
Dentro de mim inteiro e intocável
Respirando em doses cuidadosamente dimensionadas
Tenho-te
Como se fosse a única certeza
E nada mais querendo
Quero-te assim
Sem te ter

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Crente...mas pouco


Vomito-me
Cada vez que o inferno das memorias do impossível me possui
Diabo de cruz em riste
Reviro os olhos
Rio-me em estridentes gargalhadas
Babo todas as palavras insanas
Rezam
Vomito o corpo em cada frase divina
Benzem-se
Contorço o corpo desnudo em movimentos de luxúria
Prendem-me
Sorrio irónica olhando o santo
Peço mais
Batem-me
Grito o nome do meu Deus
Fazendo corar o mundo virgem
E deixo-me possuir até ao êxtase
Contendo o demónio em mim
Desmaiando finalmente quando me molha a agua benta.

40 Graus...à noite


E este calor que não passa
Arde em febre a noite em mim
Na pele
Todos os graus da agua ardente
Esperando a sede dos teus lábios
E o toque cuidado dos teus dedos
Sarando as feridas
Inflamando a chama
E este calor que não passa…
Noite etilizada
Inconsciente do vicio mortal
Acordo ressacada
In-dependente
Desfaço as veias
Torno-me poro
Por onde me destilo
Gota a gota
Para que me afogue… ou me vertas no teu co®po e te embebedes de mim.

E este calor que não passa !!

Fio de prumo...Desalinhado



Fio de prumo
Os cabelos lisos
Eléctrica…mente comandados
Despenteiam as memórias
Num desalinho verificado ao pormenor
Pelos teu dedos entrelaçados na nuca
Numa queda de livre vontade
Ausentam-se eternamente
Jazendo algures num canto
Num leito
Num peito
E apressada…mente
Enrolam-se em saudades
Em jeito de mudança de visual
Os que ficaram presos
Rebeldemente
Afrontando a vontade
Disfarçam agora
Quando os passo por entre os dedos
Caem em surdina
Num bailado em câmara lenta
No espelho dos meus olhos

Testamento…em segunda mão




Agora deixo-te a mágoa
Com vistas para todos os cantos do quarto onde me resto
Agora deixo-te a pena
Com ponta afiada, ainda tingida de todas as palavras invisíveis
Deixo-te ainda o fato
Do facto acordado sem vontade
Tamanho grande e sem ser novo
Vestido vezes sem conto e remendado
Ficas com os resto da mortalha
Que sem morto servirá para cremação
E do fumo surgirá o branco e negro
Para que se mate o que restar do coração
Ficarás também com toda a terra
Que sem cova abrirá sem ser cavada
Porque as cinzas serão o vento
E da terra nascerá a madrugada
Deixo-te toda a força do que sinto
Mesmo desmaiada a forma com que se mostra
Já não importa
E de fraca, deixo a força com que minto
Deixo-te os prantos e as dores
Sem parto fora de tempo se findaram
E amargaram….
Ao mesmo tempo que pariam a ternura
Deixo-te a ânsia do prazer em gemidos
Numa caixa já contidos
Para que morra o eco do corpo moribundo
E ficarás com todo o amor que se fez
E todo aquele mais que germinar
Será teu
Por direito…

(imagem:http://morefreakshow.blogspot.com/2010/07/dark-e-surreal-foto-manipulacao-by.html)

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Até Amanhã...


Tenho sono
Mas o sonho não me deixa dormir
Insiste no som
No cheiro
Nas imagens
Que me perseguem noite e dia
Mas não é castigo
É prazer daquele que dói um pouquinho
Assim remoendo cá dentro nas entranhas
E eu sorrindo, ao mesmo tempo que me contorço de dor
Tenho sono!
Digo-me em segredo para ninguém escute
Porque me sinto cansada
Exausta
Por vezes ausento-me da vida
Só ás vezes…
E não necessito de dormir
Nessas horas
Sou-me mais
Sou-me inteira
Una
Deixo-me possuir pela imensidão que me assedia diariamente
E a loucura que temo toma-me como sua
Essa sede
Essa fome
Essa ganância até
De deixar-me possessa de mim mesma
Enche-me as horas em que não durmo
E no escuro
E no silêncio
Encho de claridade a alma
E grito de gozo sádico para os morcegos
Nos olhos dormem depois todas as criaturas
Que descubro acordada em horas adormecidas
No peito, sonham todas as esperanças
Que mantenho algemadas às veias
E por isso vivo
Quer durma quer não
Porque me sei desta condição
E não temo a falta de sono que vos perturba
Tenho sono!
E agora vou…desistir …só até amanhã…de mim.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Quando morre uma andorinha...



Quando se morre, só um pouquinho
Temos pássaros nos olhos em bailados primaveris
E o Outono insiste em mandar embora as andorinhas do nosso coração
Cá dentro, o corpo tem nas veias a vida autónoma
Que, sem saber quem dá à manivela ou à corda
Faz bombear toda a vida até ao coração
Mas somos mortos a prazo
Não! Não é como todos, sei o que pensais
Este prazo não é uma incógnita, como a de todos os comuns mortais
Não sabereis o que é ver nascer o dia dentro de nós a cada madrugada
Mas ser noite lá fora?
E quando o corpo insiste em ser criança, querendo saltar à corda
E simplesmente coras só de pensar na sua ousadia?
É assim a vida a prazo
É assim a morte em meias doses
Bebemo-nos em copos sem pé
Quando nos sabemos vinho de reserva
Não falo de seres superiores
Sei-me igual
Sei-me por vezes menor que os menores
A questão está na minha consciência
Eu sei que não menosprezo os outros
Eu sei que não me coloco em pedestais
Mas..os outros não me vêem com os meus olhos
E não consigo falar outra língua que não a de indígena
Pinto o rosto com a seiva das minhas angustias
Desfaço na palma da mão insectos venenosos
E faço a guerra, do tudo ou nada no momento
Caindo depois em terra…exausta
Triste e consciente do ridícula que sou
Nem sempre a razão vence dentro de mim
Nem sempre dentro de mim há justiça
Mas eu sei que os pesos que coloco na balança são os iguais
Porque não nego o amor aos outros
Mesmo que meus olhos naquela hora sejam balas
Da mesma forma que os odeio num segundo
Amo-os uma vida inteira
Mas eu
Eu não consigo deixar de querer ter pássaros nos olhos
A brincar às primaveras
E ninhos de andorinhas no coração, para que nasçam todas as possíveis vidas que sei possuir
E nos dias de Inverno…morro um pouquinho
Enquanto todos os pássaros aguardam a próxima estação em mim…

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Diário de uma assassina



Dia negro
Do mês ausente
Do ano que me faltas

Querido diário
Hoje, ainda nem nascera o dia, cometi o crime mais que premeditado
Assumo a culpa
Cumprirei a pena
Não mostrarei arrependimento
Tinha que ser!
Não te contarei os pormenores mais sórdidos porque te sei sensível
Ninguém me entenderá como tu, mas não te exijo o impossível
Há coisas que morrerão comigo, nem que me torturem
Hoje, depois de tanto, depois de tudo
Deixe-me levar pelo instinto de defesa
Ou talvez seja apenas uma questão de fazer justiça pelas próprias mãos
Mas deixei que me inundassem as lembranças
Afoguei-me por momentos nas memórias
E não resisti
Fui ao fundo de mim
Naquele momento único em que fechei os olhos
E me guiei pelas próprias mãos
Senti que ela me matava lentamente
Já disse que foi em auto defesa?
Pois então…
Ela suga-me o sangue das veias
Deixa-me vazia de vida
Enlouquece-me lentamente
Um dia, é um perfume qualquer que surge vindo do nada
Outro, uma musica que há muito apaguei
E toca
E toca
E toca
Toca-me tão fundo que me sinto levitar
Outras vezes, são as minhas próprias mãos que teimam em me fazer lembrar..e sentir…e sentir…e lembrar…
Tenho tentado usar luvas…sem impressões pensei conseguir escapar
Mas nem sempre posso andar de mãos nos bolsos…
Certo dia não conseguia acordar…não sei como ela fazia, mas eu sei que eram sonhos criados por ela..
Depois, havia objectos com histórias dentro…que me apareciam vezes sem conto em horas menos próprias…e tu sabes que eu adoro histórias não sabes?
Juro que resisti à loucura o quanto pude
Fiz-me de forte em choros de origem quase sempre alérgica, este tempo!!
Até que hoje, hoje querido diário…hoje não aguentei mais e Matei!
Não, não o nego…
Hoje matei a Saudade!

Só me resta esperar que se faça justiça e me condenem à pena máxima
Eu deixarei matar-me por ela!

(Para quem não sabes, as Saudades costumam ressuscitar…por vingança, digo eu. Ou então é apenas …Fado)

http://www.youtube.com/watch?v=Ge7hI0kJtlM

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Manuscrita


Procuro A palavra que me falta
Não a conheço ainda porque nunca a pronunciei
Mas imagino-a
Como imaginava antes de saber falar, todas as outras palavras que vieram até mim, sem que as procurasse
Sinto-lhe a falta como se ela fosse a única capaz de me tirar deste silêncio
É algo estranho esta minha necessidade, quase doentia, de encontrar A Palavra
É como se ela fosse minha, sem antes me ter sido dada
Como se fosse só minha e de mais ninguém
Sei que existe algures
Em mim…
Fora de mim tantas vezes também
Mas não me surge assim inteira
Repleta das sílabas que sei que a formam bela e verdadeira
Como só ela, A Palavra, pode ser
Persigo-a até a exaustão
Sinto-lhe a presença mas foge-me
Como sombra, quando me viro, ela simplesmente foge para trás de mim
Como se invertesse o jogo do apanha
Não a encontrando debaixo, ou na ponta de língua
Não se cruzando na linha das outras
Faltando-se a si própria
Quando nem como as cerejas consegue ser
Embora rubra
Embora redonda
Embora apetitosa
Foge-me, deixando-me a salivar de boca aberta
Neste desejo que lhe tenho
E é principalmente à noite, que contrariamente ao que seria suposto, ela mais me foge
Não dorme
A palavra nunca dorme, como se vivesse de uma força interior, de sabe-se lá o quê, de que força é feita uma palavra fugidia?
No escuro, volto a pressentir a sua existência
Sem nunca antes a ter escrito, lido ou pronunciado
Ela, A Palavra, existe principalmente na sombra
Do que eu poderia dizer
No que poderia ter escrito
No que desejava tanto ler
E naquele silêncio, quase sepulcral, em que se sente a morte do que poderia ter sido se a tivesse encontrado antes, talvez até na hora mais incerta, talvez no local mais impróprio, talvez num tom de voz quase inaudível ou numa letra indecifrável, sinto a certeza da sua existência quando finalmente, a leio com a ponta dos meus dedos, no teu corpo.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Ausência, presente!


Ausência
É como o pássaro que não canta mas voa
E atordoa a mente, que o imagina pássaro só por cantar
Ela é a cor
Do branco que a nega e do negro que lhe faz sombra
E nos nossos olhos a íris teima em reinventar o arco da fortuna
É a pedra solta na calçada
Em que tropeçamos todos os dias, mesmo depois de a pontapear
Ela é também a distância que teimamos em fazer perto
Comprando passagem de viagens sem volta
Em primeira classe de uma nave espacial
É a presença constante do pensamento louco
Que nos faz usar disfarce no meio da multidão
Para que não sejamos enclausurados nas masmorras gélidas e escuras da solidão
É a normalidade do dia a dia
Em que nos esquecemos de dizer boa noite a quem passa
Porque teimamos em não deixar deitar o sol, mesmo quando a lua já anoitece
É a falta de ar do enforcado mesmo depois da corda se partir antes da hora
É o espaço limitado do elevador, ao peso máximo da nossa consciência…e usamos a escadas
É a coragem do assassino a soldo
Que mata o irmão gémeo da vitima encomendada
É a falta de sorte no jogo da roleta com vicio
E teimamos em jogar
É ainda a marca de agua na nota que nos roubaram
E a sola do sapato, que o sapateiro remendou mas nos deixou de servir
A bola que entra na baliza alheia, num fora de jogo que alguém pagou
E a vida da puta que em vice-versa a matou
É o ar que fica debaixo dos nossos pés, num salto mortal em retaguarda, sem rede nem trampolim
Chega a ser o fim, do filme em que o actor faltou
E a hora, já fora dela mas que insiste em se dar
E a pressa, que todos temos quando atrasados chegamos ao jantar
É o engodo a pensar ser a pescada
Somos nós
Em cada vez que nos ficamos por cumprir
Mas teimamos em retratar momentos felizes de ocasião
A ausência é o meu pensamento
Cada vez que me lembro do que queria ser quando crescesse
Cada vez que fui feliz, mas esqueci
De cada vez que me faltam as palavras para explicar…a falta que sinto
Daquilo que ainda não fui
Ausência é quando nos perdemos… mesmo estando de mãos dadas

Bomba relógio


Antes, escrevia na pele com saliva
Lia nas linhas do corpo
Soletrava todas as silabas das palavras
O tempo era um todo
Contado ao segundo sem se ouvir passar
E eu escrevi na pele com o suor
De quem teima em se perder no caminho
De quem recusa ouvir o tic tac ameaçador
Antes, guardava os meus segredos em caixas vazias
Para que fizessem eco no meu pensamento
E sorria..a cada lembrança
Maliciosamente..sorria
Antes, o livro era eu
Cheia do que não se diz por medo
Cheia do que se escrevem em linhas rectas
Cheia de entrelinhas, invisíveis
E lia-me pelas madrugadas dentro
Folheando cada páginas com dedos húmidos
Parando nas virgulas o tempo necessário do respirar
Pontuando as frases com beijos
Finalizando capítulos com orgasmos
Gemendo a cada página em branco
Antes, nada me parecia tão triste
Como a ausência do texto que sabia esconder no meu corpo
E agora?
Abro o livro ao contrário e…
Começo a ler-me na palavra fim…
Terminando na primeira página sem pontuar
Agora
Amarroto na palma da mão todas as estórias que ainda sei possuir
Mas não tenho mais madrugadas para as contar…
O tempo é um todo
Contado ao segundo
Que se ouve passar…

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Interregno



Naquele espaço de tempo em que tudo pára
O nada aparece como que sendo algo esperado
Aguarda-se o tempo seguinte
O tudo pode acontecer
E no intervalo de tempo da espera
Surge …o tempo perdido

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Pouca Terra



Raramente ouvia as noticias, ler jornais também nunca fora seu habito.
Naquela tarde tomara a decisão de seguir viagem, metera os poucos haveres dentro da única mala de viagem que tivera toda a vida e que praticamente nunca se lembrara de ter usado.
E agora estava ali, naquele banco de madeira ressequida, notava-se que fora pintado de azul pelas sombras azuladas que se conseguiam ver na madeira, sentada a olhar o relógio que parecia não se mexer.
Em todas as estações havia um assim, grande e dando as horas certas, para quem esperasse o próximo comboio não ficasse em terra.
A linha de comboio era agora uma linha coberta de vegetação, a única coisa que parecia com vida naquelas paragens…soprava um vento quente que as fazia ondular e tornava menos agreste o cenário.
Ela olha o horizonte serenamente, os seus olhos naquele momento pareciam espelhos…onde se olhava toda uma vida.
Esperou tempo sem fim, não contabilizado pelos minutos ou horas, mas contado pela expressão do seu rosto…foi de menina a mulher, cresceu, ali sentada naquele banco de estação de comboio.
O seu pai tinha sido chefe de estação, ela lembrava-se bem do tempo em que a vida era uma correria, entrando e saído da estação, ora para levar o almoço ao pai, ora para ficar apenas a ver os comboios partirem e chegarem…levando horas sem fim a acenar aos passageiros que lhe respondiam com um sorriso.
Fora feliz a sua infância, lembrara-se agora que fora feliz…
De repente ouve um apitar familiar ao longe e ergue-se de repente, agarrando a mala, arranjando o vestido e voltando a apertar o lenço que teimava em cair da cabeça…chegou-se junto ao carris…como quem tenta não perder o lugar melhor ou até quem sabe…como quem tenta não ficar em terra.
O comboio chega, perdendo a velocidade à medida que se aproxima da estação…e apitando cada vez com mais força…parecendo acompanhar as batidas do seu coração.
Entra, senta-se no lugar que sempre desejara...junto à janela e de costas para a estação…seguiria olhando em frente, o que deixava para trás não precisava de olhar, nunca esqueceria.
Esperou um pouco e logo depois o comboio voltou a apitar dando sinal de partida.
Ajeita-se no banco e sorri olhando a janela
O seu corpo mexe-se conjuntamente com o deslizar da máquina no carris, era como se dançasse…e há tanto tempo que ela não dançava!
A estação ia ficando para trás, ao longe vê-se um monte, o mesmo monte que sabia ser habitado pelo simples facto de ver todos os dias o fumegar na chaminé…bem de longe ela seguia aquelas vidas tantos anos…e agora estava ali tão perto.
Umas vacas pastavam e pareciam indiferentes à passagem do comboio. Perto do monte um homem trabalhava a terra e junto dele uma criança brincava com um cão.
Ela olho-os, e sem saber porquê, acenou-lhes com um gesto lento e longo de adeus…ao mesmo tempo que sorria. O homem não parecia dar importância ao facto mas a criança parou, e com uma cara de quem está incrédulo mas ao mesmo tempo feliz, responde ao gesto fazendo igualmente adeus e corre, juntamente com o cão, tentando perlongar o momento…
Mas o comboio não parou e ela vira-se para trás na tentativa de ver a criança mais um pouco…o monte desaparece atrás da serra e a paisagem muda frente aos seu olhos.
Recompõe-se e volta a olhar pela janela na esperança de fixar todas as árvores, todos os animais, ou coisas que reconhecia…saberia que não faltaria muito para deixar de se sentir em casa, a paisagem mudaria rapidamente e ela depois só teria as suas memórias.
Ao longe ouve uma porta a abrir e um som familiar… era o som do pica bilhetes, que em tempos, tanta vezes lhe servira de brincadeira…levou a mão ao bolso e retirou o seu…e num gesto seguro esticou o braço para que todos pudessem ver que ela o tinha…antes que fosse inutilizado e de nada mais servisse a não ser como prova, caso alguém um dia duvidasse, que ela tinha feito aquela viagem.
Ouviu-se o crick uma e outra vez…e depois disso nada mais se escutou.
No dia seguinte, quem via televisão e lia jornais, pode saber do facto bizarro acontecido naquela região…na estação de caminho de ferro, encerrada há anos e anos, foi encontrada uma senhora de idade avançada, não se sabe ao certo quantos dias estaria morta naquele banco…uma mala numa mão e na outra uma fotografia dela enquanto moça. Naquela fotografia podia-se ver o seu rosto bem jovem, com dois buracos no lugar dos olhos.
O revisor tinha passado por ali… ao longe uma criança continua a fazer adeus, todos os dias à mesma hora…a um comboio de deixou de passar.

Pensamento



Mata a raiva com as pontas dos dedos
E sorri sadicamente em cada click
Abre caminhos por entre cactos
Catando os dias como quem cata piolhos
Escorrendo sangue
Como que anestesiado
Segue indiferente à dor
Faz campa rasa e escura
Sem pedras
Sem lágrimas
Epitáfios
Ou flores
Espalha o sangue pelo corpo
Dando à pele a cor da vida
Em laivos de morte
Em carne apodrecida
E nas veias, correm bichos rastejantes
Que fazem da planície do ventre, montes
E que roem as raízes do ser em decomposição
E a palidez do rosto
Confunde-se com a luz do dia
Claridade obscura
Que ofusca a vista
Sombreada de ilusão
Olhar vazio, através de lentes de aumentar
Vendo ao longe, o que perto não pode encontrar
E soluça
Este bicho desumano
Sem ter lágrimas em que se possa afogar
Transforma o choro em riso de hiena
Morre de pena
Vive a voar
Foge da lógica da cadeia alimentar
Mata a fome apenas ao respirar
Talvez seja um engano
Uma aberração
E longe da visão…ninguém poderá chocar
Mas existe porque se pensa
Existe porque se sente
Seja bicho ou gente
Mais valia não viver para contar
Inoportuna a vida, que súbita, tira a paz da nossa morte
Até que Deus queira
Ou que o próprio crente se mate
Bicho rasteiro…cria asas sem hibernar
Homem sem caverna
Gente sem gente
Bicho
Loucura
Alucinação
Ou qualquer coisa por inventar

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Passagem secreta


Quando chegas
Fazes de mim a porta por onde entramos em segredo
Quando partes
Fazes de mim janela onde me quedo a olhar
Quando juntos
Cerramos as portas e as janelas ao mundo
Vamos ao fundo da nossa passagem secreta
Onde só nós nos podemos encontrar
Lá, há um espelho mágico como nas estórias
E de olhos fechados…vemo-nos no reflexo uno
Nos olhos um do outro
Secretamente
Somo-nos
Temo-nos
E ninguém mais aqui poderá entrar.

Prostituta da Vida



Não merecem as palavras nem o corpo
Muito menos a alma que vagueia
Ofertada em bandeja enfeitada
Matando a fome de todos os fieis descrentes
Dá-se como se fosse a ultima ceia
E lambuzam-se os pobres diabos
Escorrendo saliva pelos olhos
Enfartando à bruta o vicio
Da gula pecaminosa que os mantêm
Bulimia social
Que vinga dia após dia
Doentes crónicos
Aceites como saudáveis
E em jogos milagrosos
Vencem com xeque mate
Como se fossem reis
Coleccionam cromos, por vezes repetidos
Dentro da sua bíblia
Que abrem ao acaso para rezas de ocasião
Onde coabitam santos e palavras sem razão
Sacrificam-se os animais
Num ritual aceite
E nas noites tão iguais
Fazem-nos pensar que são gente
E nós teimamos
Queremos possuir a bondade
E damo-nos tantas vezes
Mesmo já sendo tarde…
E um dia ela vende-se
A alma desfeita do corpo
Enfeita-se
Rende-se
Como pu.ta na cama de outro
Numa outra vida
Reencarnara de novo
E talvez desta vez
Ela saiba só vender o corpo.

sem ofensa mas..queiram lá fazer o favor de...



Fo..da-se o medo das palavras
A falta de coragem
A falta de ousadia
Fo..da-se este dia
E o dia das missas e orações
Fo..da-se o homem certinho
Até o seu amigo e vizinho
Fo..da-se as cantigas de amor e o fado
Fo..da-se os gajos ca.brões
As gajas mal fo.di.das
Fo..da-se o raio desta vida
Os egos inchados
Os políticos desonestos
Fo..da-se o meu próprio manifesto
E a loucura das minhas contradições
Fo..da-se a minha vizinha e a cadela que não se cala
Fo..da-se ainda quem se cala
A galinha e os ovos de ouro
Fo..da-se o ordenado que não chega
A inveja e a ganãncia
Fo..da-se o vinho aguado
O cigarro que me mata
Fo..da-se a gente de barriga farta
E a riqueza dos ladrões
Fo.da.se!

Ora fo.dam-se todas as opiniões
Eu quero lá saber se acham mal
Fo..dam-se todos em geral
Que eu vou usar palavrões!!

Disse..ufff e que bem que me soube!
Agora corem a ver se me importo…

Nadas


Guardo-me como se guardam os segredos
Entre pensamentos dispersos, confusos
Encontro-me por numa tarde de domingo cinzenta
Entre aquela chuva que finge ser molhada
Entre as ruas onde se passeiam cães vagabundos
...Na ausência de pessoas com destino
Contentores cheios de restos aguardam a madrugada
Um velho saiu à rua ousando ainda viver
Olhamo-nos
Parecemos iguais naquela hora da tarde
O carro circula pela via quase deserta
Em andamento automático
Vira nas curvas instintivamente
E eu sigo-o
No cruzamento, olhamos todas as hipóteses de escolha
Houvesse um raio de sol e teria ido para a direita, rumo ao desconhecido
Virámos à esquerda, chovia um ping ping molengão que chamava para dentro
Não conseguia comprar os cigarros, aparentemente todos os locais de venda dormiam
Cruzei-me com alguns rostos apáticos
Sorri, também eles apenas saíram para comprar cigarros
Passa-me pela cabeça a quantidades de coisas que me aguardavam para que as fizesse
E como menina desobediente deixei para amanhã…deixo sempre muita coisa para amanhã!
Mas os domingos, para quem não tem fé, são sempre assim…
Um dia que estende em nós com preguiça
E uma cidade que parou para descansar
Esquecendo-se dos que não têm fé, impõe-se o dia santo
Evito as palavras de ocasião, não me apetece verbalizar nada
Sou um segredo que vagueia …e guardo-me.
Fumo o ultimo cigarro dentro do carro ao som de uma voz doce que dizia..
“o impossível somos nós”
Apetece-me ir em contramão mas segui apenas no sentido do contra…
Daqui a pouco será segunda feira e quase todos os locais venderão cigarros…

sina(is)


Dizer-te ao mundo inteiro
Em mais que palavras em segredo
Passear-te orgulhosamente pela mão
Brincar com os teus dedos na meio da multidão
E deixar que as nossas sombras na calçada se beijassem
E todos os outros corassem
E saber-te inteiro em cada parte
Sentir-te homem livre aventureiro
Andarmos nus na madrugada
Não dormir sem ser no chão depois da luta
E sem deixar que o tempo nos prendesse
Acordar na pressa novamente
Apenas para nos voltarmos a deitar nas longas horas
Enrolados
Enfeitiçados
Enlouquecidos
Perdidos
Marginais por opção
E descobrir depois de tarde
Que os sorrisos somos nós
O dia, a luz e a primavera foram nossa invenção
Que juntos fazemos o eclipse
E é no silencio que tudo se conta à lua
E a terra que se diz redonda
Girar apenas por nos tocarmos
E nos beijos fazer ondular o mar
E naquela hora, em que o chão treme enciumado
É por nos termos quedado exaustos
Depois de nos darmos inteiros, sem amarras dentro da nossa prisão
E o sol desperta com as nossas gargalhadas
Fazendo o dia acontecer lá fora
E o mundo existe apenas porque o pensamos
E nos olhos um do outro
Descobrimos o paraíso de um Deus insano
Sem nome
Sem lugar
Sem tempo
É na cumplicidade das palavras que não dizemos que existimos
E quando menos esperamos
Damos por nós no meio do amor e sorrimos
Sabendo-nos nada mais que humanos
Com todas as formas de vida por descobrir num momento em que nos damos
Sem amanhã para que se possa comprovar a nossa teoria
Mas com todas as provas da nossa existência
Na minha e na tua pele
Na mão que demos a ler a uma cigana

Desfolhada



Malmequer
Bem-me-quer
Muito
Pouco
Nada
Cantilena de criança
Num ritual ilusório
Sorte
De gente
Para a má sorte da flor
Desfolhada ardilosa
Sequência dolorosa
Puxando com força a pétala de carinho
Arrancado a dor ao destino
Malmequer
Bem-me-quer
Muito
Pouco
Nada
E de novo recomeça a desfolhada
E se acabar em Nada
Pegamos em outra condenada
Teimosos em controlar a vida
Até que não sobrem pétalas
Das Rosas às Margaridas
Faremos dizer Sim às que nos querem dizer Não
Há-de ser virada a sorte
Nem que
Bem-Me-Quer leve à morte da flor da ilusão.
Bem me quer
Mal me quer
Muito
Pouco
Ou nada

O vestido



É quando me viro de costa, segurando o cabelo com uma das mãos
Deixando o pescoço exposto aos teus beijos
Sentido o arrepio da aragem da tua respiração
Que o deslizar da tua mão
Provoca a abertura do fecho do meu vestido
E ao mesmo tempo que fico seminua
Sou eu agora quem desliza
Ainda a meio de ti
Ainda a meio de nós
Ainda com aquele olhar de quem sabe o que nos espera
Mas alonga o tempo num morder de lábios
Numa tortura doce e desejada
Deitando por terra os restos que não importam
Deixamos que a luz da rua ilumine nossos rostos
Cheios de vida
Cheios da nossa verdade naquela hora
E depois
É num virar de costas, que sem palavras
Te peço que voltes a deslizar os teus dedos
E me feches o vestido
Ao mesmo tempo que me sinto completamente nua ainda …quando te olho nos olhos.

Sexta-feira e Liberdade


Tenho-te
Como se fosse a única certeza
E nada mais querendo
Quero-te assim
Sem te ter

"No paso nada"



Antes, quando o dias eram longos e nos deitávamos na tardes calmas
Era possível o impossível do sonho dos homens
E assim se criavam os sorrisos nos pensamentos
E o dia de amanhã era sempre esperança
Antes
Antes a ternura dizia-se nos gestos simples
E as pessoas sabiam-se amadas sem mais…
Mas antes não dura sempre
E o agora, que fora esperança do antes
É unicamente o silencio do nada
Que se cala, como se fosse obrigado nada sentir em palavras ou gestos
Agora adivinha-se a ternura que não se faz ou diz
Fazendo girar os dias numa roda dentada
Enferrujada
Rangendo
Encaixando ao acaso uns dias nos outros
Entre ruídos mecânicos fabricando a ilusão do antes
Empacotado depois a esperança, em embalagens com validade limitada
E quando chegam os dias longos
Ninguém se deita nas tardes a fazer os sonhos possíveis
Porque o impossível aconteceu
E deixámos de sonhar

Borboletas na barriga



Ela enrolava-se na desordem do pecado original
Tentando a custo que lhe toca-se na sorte o inferno
De um outro pecado sem origem no bem ou no mal
Nascido da carne desalmada
Ou na alma de ninguém
Ela reconhecia-se na insensatez dos seus pensamentos
Embora com enorme susto aquando da primeira vez
Mas crescera e aprendera a aceitar-se desigual de quem a fez
E hoje renasce pura e casta tanta vez
Que se sente apenas confiada a uma nova sorte
Nem sempre certa
Nem sempre liberta
Mas renasce e faz-se muitas vezes mulher
Não se mente quando se sente malvada
Ou até quando se nega ser generosa
Apenas é
Uma outra que crê
Afundando em partes nebulosas
Que depois tenta matar
Por não ser tão cruel ao ponto de a deixar crescer
E afoga-a no estômago entre viscosos líquidos
Digere-se em movimentos automáticos
Como se fosse natural e orgânica
A mutação do ser quem é
Em substâncias que se fazem e desfazem do que sente e não sente ser
Na essência que a sustêm
Voltara a renascer tantas outras vezes
O pecado que sem ser original
A levará ao paraíso de se saber humanamente imortal
Até ao seu ultimo dia

Filhos da Loucura



Não fora ao acaso
O corpo que lhe deram à nascença foi escolhido cuidadosamente
Todos os Deuses concordaram na eleição
Seria ela
A virgem de formas robustas
Curvas sensuais
Pele de seda
E uns seios volumosos que fariam inveja às fontes ressequidas
Teriam um rosto normalíssimo
Apenas adornado com um olhar profundamente misterioso
E ela cresceu
Fez-se mulher na terra como foi desenhada nos céus
E à medida que crescia
Naquele corpo criado à medida dos Deuses
Todos os homens iam morrendo
Cada um que a amara não mais voltaria
Nem dela fariam cama de parto
Mesmo tendo ela dado à luz centenas de amores
Era infértil, diziam
E como a terra que não gera vida
É abandonada à sua sorte
Ficando apenas ali…a ser torrão que se pisa
E nesse abandono ela pariu-se em múltiplos seres
Amamentando cada um como se fosse fonte de vida
E todos eles a olharam no rosto
Perdendo-se em seus olhos de mistério
Ainda hoje embala no colo descarnado
Em cantilenas celestiais
Todos os filhos que deu à luz
De todos os amores que inventou, cada vez que com um homem se deitara
Em todas as terras há uma louca
Apenas porque os Deus pactuaram no acto da sua criação

(pintura de Amando Reis)

Notas soltas




Dedilhando a guitarra
Calavas a voz nos sons que produzias
Mentindo nas notas agudas
Sabendo-te grave
E a melodia surgia evaporando-se como orvalho
Das nossas madrugadas sonhadas
Em cada pausa angustiante
Apressavam-se os dedos a fazer vibrar as cordas
Como se apertasses a garganta em cada palavra
E sufocavas-te
Na inconsciência do gesto
O rosto sem expressão pedia socorro
Entre a duvida e a falta de senso
Resistias-te
Provocando os aplausos dos surdos
Alimentando-te a barriga
Que inchava doentiamente a olhos vistos
E como cegos tacteavam-te a alma
Ao mesmo tempo que provocavas arrepios
Na guitarra
Cada vez que a tua mão descansava nas suas curvas
No silencio da sala
Desce o pano
E tu deixas sair a ultima nota
Em simultâneo alguém pede bis
Não sabendo da impossibilidade de se repetirem improvisos

Intervalos pouco Lúcidos



Apaga a luz
Dizia ela ao seus olhos franzidos
E momentaneamente…fechou-os
Pegou num cigarro de sabor a chocolate
E mesmo de olhos fechados
Deliciou-se naquele paladar
Enquanto o fumo desenhava corpos lambuzados
Soava a tal canção nos seus ouvidos
E lentamente deixou que um canto do olho se iluminasse novamente
Num abrir pisca-pisca
Revelou a sua intermitência
Confundia-se entre a realidade à luz do dia
E a fantasia nocturna
E se ordenasse o silencio aos seus ouvidos?
Ou ainda que o pensamento deixasse de o ser?
Constante duvida a atormentava
Queria um vácuo
Onde sem visão, som ou memória
Ficaria unicamente com o sabor do chocolate enrolado em fumo na sua boca
Mas ela já não se comandava como antes
Antes seria a morte se lhe apetecesse morrer
E nem pulsos precisaria, caso a vontade de se findar a tomasse de vez
Mas agora, agora tinha dois pulsos sem vontade
Sangravam unicamente por vicio
Desfalecera antes enumeras vezes
E eles, já sem sangue continuavam a viver
E se simplesmente se apagasse da história?
Pediria a Deus ou a um qualquer criador
Que logo que se lembrasse de fazer o mundo
Não contasse com ela desta vez
Mas lembrou-se depois que não foi Deus quem a fez
E não consta que o diabo cedesse a vontades
Já sem forças nem imaginação
Fincou o pé no chão
E resolveu renascer..
Regou os pés esperando que criassem raízes
E esticando os braços esperou as folhas e ninhos de pássaros felizes
Não se sabe ao certo quanto esperou
Mas dizem que se fez arvore
Sem terra
Sem raízes
Sem ninhos
Mas fazia uma bela Sombra!

Crenças pouco Lúcidas




Tinham-se prometido em beijos e nas carnes nuas
A pele de um seria a pele do outro
Mesmo na ausência
E não seria preciso um mundo cor de rosa
Nem as noites de luar
Ou a tal cabana
Seria assim uma eternidade
O tempo findo que qualquer coisa que viva sabe ter
Ou não..
A inconsciência dos loucos fazia-os felizes
E bastavam-se nessa forma desregrada de se terem
Era bom não era?
Pois…mas Eva tentou Adão
E faz toda a diferença agora
Houvera alguém antes de Deus, com uma ideia melhor de criação
E os homens bastar-se-iam sem pecado
Porque nem a maçã teria bicho
Nem os bichos teriam a tentação de serem homens
E Deus? Quando resolvesse criar o mundo
Pensaria duas vezes, e nada mais faria que criar a loucura
E a única religião seria o Amor sem imposições
Sem rituais, nem missas de domingo
E nas procissões os andores ostentariam corpos nus
Levados em ombros por loucos
E as almas que vagueassem por ai
Encarnariam depois de o fim do mundo acontecer
E seria necessário Luas cheias
Um mundo pintado de cor de rosa
E uma cabana…para se voltar a prometer o impossível nesta vida.

E eu que não sei falar de Abril




E eu que não sei falar de Abril…

Queria dizer toda esta força que me invade
As lágrimas que nascem dentro do peito em mar de esperança
A pele que se arrepia sem estar frio
E aquela hora que chegou soando a tarde.
...E esta alma que ergue o braço em movimento
Rasgando todos os espaços num vazio que me sufoca
Como asas que se soltam pelas grades
De gaivotas a sobrevoar o sentimento
E a minha voz que se embarga na canção
Ou o abraço do amigo e camarada
Dando a certeza que somos mais quando abraçados
Pela força e grandeza das nossas mãos.
E o sorriso que se abre como os cravos
Ou como sangue … dando mais vida à nossa luta
E o “lembras-te” como foi possível a Liberdade?
Que contamos revivendo a revolução
E de como das mãos calejadas nascem espigas
E da terra com suor se fez o pão.
E a força da palavra Liberdade
Que surgia pelas ruas e ruelas esquecidas
Era arma
Era a força da verdade
A fazer paz no lugar da guerra sem razão
E o sonho que sonhado em mês de Abril
Como quem acorda depois feito um homem novo
Erguido
Renovado
Sem ter dono
Erguendo o punho olhando em frente
Querendo ser tudo..até ser gente
Negando viver na escravidão
E eu que não sei falar de Abril
Como Abril me foi assim antes falado…
Brilho nos olhos
Cravo no peito
Erguendo o punho
Liberto Abril em mim aprisionado...

Contrabandista de sonhos



Contrabandista de sonhos
Chamavam-lhe assim desde o tempo de menino
Desde sempre que pisava o risco que dividia o sonho da razão
Trazendo para o lado de cá do mundo, que se toca e cheira,
Todas as coisas que só existiam nos olhos das crianças e no coração dos loucos
...Desde esse tempo que se escondia na escuridão da noite
Pé ante pé
Cuidadosamente abrigado dos olhares dos donos do mundo
Procurando silenciar a cotovia que trazia ao ombro
Não fosse ela, na inocência de pássaro, piar na hora imprópria
Tentando fugir às mãos pesadas dos crentes na verdade visível e palpável
Cresceu contrabandista
E quem cresce na margem nunca será levado pela corrente…dizem os sábios
Mesmo que o leito tome mais do que lhe é devido
Mesmo que o tentem engolir no meio do lixo e restos das coisas
Ele escapa sempre
Nunca, nem mesmo quando alguns se iludiram com o seu ar de gente normal
Ele foi igual aos outros
E não era fácil esconder de todos este segredo
Nem conter a vontade de gritar de euforia cada vez que descobria mais uma fada no meio das couves
Ou um simples pássaro verde dentro do prato de sopa
E nas nuvens, nas nuvens ele escondia as estrelas do mar apenas para que adormecessem um pouco
Quase todas as noites enchia os bolsos das calças com pedras preciosas
Que juntava pouco a pouco na carroça do avô, sem que este desconfiasse de nada
Nem mesmo quando depois de erguer o muro da casa, que andava a construir há anos, estranhasse o brilho que ele tinha mesmo sem lhe dar o sol
E o menino cresceu assim entre a realidade e a fantasia
E ninguém se lembra de alguma vez o ver triste
Apenas silencioso
Pois só ele sabia falar na linguagem das outras coisas
Aquela em que é possível ouvir-se claramente a dor das ruas
Os choros das aves e os risos dos peixes voadores
A mãe, sempre que lhe afagava o cabelo e o beijava
Sorria e chamava-lhe o “meu passarinho”
Porque talvez sejam as mães as únicas capazes de ver as asas dos filhos…
Mesmo quando eles apenas tenham pássaros nos olhos
E ninhos nos bolsos das calças
E quando jovem, começou a guardar tudo o que trazia, do outro lado da vida, num livro
Quando eram assim coisas muito grandes..como cavalos alados e torres de princesas aprisionadas..dobrava-os cuidadosamente em palavras e deitava-os na página branca do único livro que possuía.
Foi assim que pouco a pouco ele inventou palavras que ninguém ainda conhecia
E em tantas outras criou frases com sentidos improváveis
Quando os relia, era sempre em voz baixinha
Foi por volta dessa altura que lhe começaram a chamar doidinho
Por acharem que falar sozinho não era coisa de gente normal
E cresceu, cresceu, cresceu…sem nunca mais parar
Ficou tão grande que a mãe se assustava cada vez que de manhã o ia acordar
E um certo dia, sem que nada tivesse dado conta, nem ele mesmo se apercebera…ficou homem…aparentemente como todos os outros homens, a única diferença era poder agora estar com uma perna para cada lado da linha que separava os dois mundos, e ser assim muito mais fácil apanhar os sonhos sem que ninguém o visse.
Juntava em montes, livros e livros dos sonhos que trazia em contrabando
Criando como que um muro à sua volta, que brilhava como o muro que o seu avô erguera à volta da casa.
Com o tempo, e com todos os sonhos que possuía…morreu sem nunca ter sido descoberto nem levado a tribunal.
Ainda hoje naquela casa há uma cotovia que nunca ninguém ouviu piar…e nas nuvens as estrelas do mar adormeceram para sempre.

Acústica



Contrabaixo
A voz que me acompanha como sombra
E eu sem voz que consiga entoar o alto...
Cordas bambas as pernas que se dobram
No meio do palco a luz que tomba
Centrando o vazio em mim
Ofuscando os olhos
Soa como musica de fundo o bater do pé nas tábuas secas do palco
Marcando o passo do compasso cada vez mais lento
Estalam os dedos num ritmo desadequando
E o corpo embala-se num balanço confuso
Na sala, vazias as cadeiras que te esperam
Aguenta-se a nota num tom qualquer
Não há memória da letra que sabemos de cor
Uma branca no momento do coro
E a voz implora lhe demos a liberdade
Na garganta aprisionada a hora
Soletra-se um refrão vezes sem conta
E ao fundo alguém ecoa o silencio
Fecha-se o pano todas as noites
E na agenda marca-se o dia da próxima vez
Ilusão
Não há arte maior que a nossa ilusão
E a sala teima em não se encher…
Talvez amanhã
Ou talvez depois
A sala encha para nos ver

Imagem: artista gráfico holandês Maurits Cornelis Escher

Pensamento labiríntico




Aquela massa cinzenta que a envolve
Sufoca-a momentaneamente
É como êxtase
E aguenta os segundos que não controla
Esperando o clímax da descoberta
Tantas vezes se aventurou naquele caminho
Que certa vez pensou em se perder…e assim foi!

Cábula




Posta à prova constantemente
Ela esforça-se para acertar nas perguntas que se faz
Sabendo a verdade de cada uma..hesita
Apenas por não querer ter razão.
E noite após noite faz a revisão
Lendo e relendo o que ninguém escreveu
Mas ela adivinha…
E em sofrimento antecipado, tenta não errar mais
Nem que tenha que apagar o coração
Quando chega a hora
Aquela hora em que novamente se testa
Ela saberá tudo como se fosse de cor
E ardilosamente consegue enganar o olho do destino
Apenas porque já antes tinha escrito no seu corpo
Todas as formulas
Todas as contas certas
Todas as palavras acordadas
Todas as hipóteses de múltipla escolha
Todas as regras e a sua excepção
E bastará depois despir-se pouco a pouco
Sem que ninguém note a ousadia
Sem que ninguém lhe veja a pele desnuda
E no fim da prova
Sairá airosa
Passando com distinção!

Drogas duras




Querer dar-te quase tudo já não serve
O quase que me resta é todo teu
Enrolo-me como o tabaco que fumas
Em sedas que lambes lentamente
E agora?
Que sendo fumo me elevo
Em figuras desenhadas com cuidado
Sopra-me
Sopra-me mais um pouco para o céu
E que dentro de ti tudo acabe
Eu ardo ainda com a chama
Quente, quando os dedos enrolam o carinho
E depois do ultimo sopro
Resta só o derradeiro gesto no cinzeiro
Deita-me a cinza que me forma
Na superfície negra arrefecida
E apaga
Com gesto seguro, firme e certeiro
Calcando a única parte que de mim não arde
Apaga o corpo que em fumo já ardeu
Enquanto soltas
Esse cinzento nebuloso para o céu
Eu vicio-me
Desfeita na pontas de outros dedos com malícia
E sem importar ser cedo ou tarde, a que enrola serei eu
E viciada na ternura desses gestos
Beijarei os lábios dessa droga dura
Serei uma outra, menos pura
Enrolada em seda fina..Selvagem
Que morra antes que vá presa
Porque só dependo desta minha perdição.
E a ti ninguém acuse
Fui eu que não disse Não

...




Negro
O sinal imposto
Restos de um beijo
Sombra de um.. Quase!
Carvão
Antes brasa fosse
Ou chama do nome
Que arde

Modas




Ele trazia sempre aquele nó
Apertado cuidadosamente pelas mãos dela
Na garganta, que tantas vezes engolia em seco
E na gravata, que tantas vezes usara para a cegar

Ela trazia sempre aquele colar
Pérolas vagarosamente contadas pelas mãos dele
No peito, que tantas vezes descobria
Nos dedos, que tantas vezes usava para o tocar

E era quando os nós…se enlaçavam
Que se vestiam os corpos nus para dançar…

ObjectivaMente


Há toda uma vida por detrás das coisas
E ela sabia-o pelo odor que deitam os pressentimentos
Pela sombra que faz a intuição
E essencialmente pela vida que as coisas possuem em cada nosso respirar
Os objectos tornam-se sujeitos na subjectividade do toque
E em cada contacto os tornamos vivos
Aquele isqueiro que agora acariciava…tornava o bater do coração audível
Ao mesmo tempo que iluminava os seu olhos, num receio controlado
Na certeza da chama do acto impróprio
O próprio cigarro sorria-lhe antes de se deixar morrer nos seus lábios
Eram como cúmplices na morte
Apenas o cinzeiro não se tornara intimo…objecto facilmente substituído pela palma da mão
O copo, de vinho translúcido, era o seu alter ego tomando forma
E ela possuía-se assim nas coisas com vida
Não tendo certeza alguma, ou apenas uma
A certeza da loucura da mente que só ela dominava
Deixa por isso o corpo aprisionado
Num toque social de complacência
Não imaginando o quanto se tornariam intimas
Ela e a sua camisa de forças fundiam-se
Objectivamente possuídas
Tornaram-se amantes logo apôs o primeiro contacto
Entrando nas veias uma da outra
Fecundando-se mutuamente com o génio da loucura
Ao ponto de se aceitarem tal como são
Chegando por vezes a pensarem-se gémeas
Não desvendando qual das duas fora antes a primeira
Qual a que vestia quem naquela hora
E ao longe uma gargalhada sonora
Fazia-as recuperar os sentidos
E despiam-se momentaneamente da mente dividida
Para se vestirem da mente social
Nessas alturas um vestido negro saia do roupeiro
E ela sairia à rua como vieram ao mundo
Nua
Completamente nua de si
Como no tempo em que os objectos não tinham vida…normalizada ainda.

Afinador de pianos


As cordas vibravam ao toque dos dedos
E entre negras e brancas teclas se perdia
Rosto a rasar os sons
De tão clara a sintonia
E de repente ergue-se
Agarra as cordas
Arqueando o corpo sobre o corpo negro
Reinventa o piano na sua génese
Com os dedos no seu interior
Qual afinador exímio
Controla o vibrar ao ritmo que ele impõe
Torna o objecto desnecessário
Não fosse o facto de ninguém imaginar um piano sem teclas
Ela seria o instrumento perfeito nas suas mãos de Mestre

Manipuladora


Manipuladora
A realidade
Olha-a nos olhos e ela mente descarada..mente
É…e já não é
Será?
Foi?
A opinião generalizada manifesta-se no sentido comum das coisas
Nunca encontrou guarida nos sentidos partilhados
Marginal
Esta ideia fixa de se ter que ser, não a deixa ser
Iluminada criatura que vê para além dos outros e de si
Abusadora dos sentidos, é o que é!
Nos dias em que se mistura aos tons cinzentos
Descobre-se na imperfeição perfeita dos outros
Não se deixando ir na maré
Também não nada contra ela
Como quem fica a boiar à superfície
Sabendo profundo aquele mar de gente
Odeia o tubarão e o golfinho
Chegando a amar ambos, nas marés calmas
Indigna-se com os hábitos das algas
Emaranhados seres
Viscosos
E verdes…verdes!!
Qual vómito das sereias depois de prenhes dos pescadores
Gostava do surrealismo do cavalo marinho
Chegava a rir à gargalhada com estúpida forma da criatura
Pura inveja..ela sabia-o
Perdia horas a fazer boquinha de peixe
Apenas para se sentir ridícula…ou ver as bolhas de ar a fazer-lhe lembrar bolas de sabão
As botas velhas que morreram afogadas
Esperavam ser resgatadas em vão
Ela macabramente ficava a contar os pares
Trocando muitas vezes a lógica…fugindo a qualquer possível combinação
Estava sempre ao lado dos náufragos
Insistia em lhes continuar a escrever o diário de bordo
Sentava-se na margem e registava a força da vida cada vez que algum morria…
Trazia sempre uma bússola no bolso …para a qual nunca olhara
E sem binóculo, via a ilha que diziam existir a Norte
Fez-se ancora sem quase dar por isso
Continha a respiração e deixava-se ficar no fundo para que ninguém fosse levado pela corrente
Muitas vezes era a própria corrente…detestava águas paradas
Olhava os iates e via jangadas
Ria-se da hipócrita ilusão da ganância
E fazia colares de conchas apanhadas na única praia deserta
Onde nem lugar havia para colocar a toalha
Matava as horas…sacrificando dias
Sem esperar nada…queria o mundo inteiro
Lembrou-se da possibilidade de colocar uma mensagem dentro de uma garrafa…
Sorrindo escreveu na areia…que juntou grão a grão..enchendo uma garrafa que deitou ao mar…
Nada lhe dava mais prazer que deixar aos outros a liberdade…de a encontrar ou não…o facto de ter uma letra pouco legível era um pequeno pormenor.
E deixou-se ficar à espera…

Re-sonho


Desassossegam-me
Os passos que sem pegadas dou
Eu e aquela que me faz outra
A outra e aquela que eu sou
Não me perco
O caminho é sempre por ali
No trilho que não trilhei ainda
Na calçada que não pisam os meus sapatos
E de pés descalços…sou
Alma perdida sem se querer encontrar
Sobra-me o corpo que limita
Presa nas vistas
Solta no olhar
E no horizonte a linha
Que faço do pensamento o além
Sempre mais
Sempre pouco o que se avista
E da linha faço o destino
Que se lê na pele como a cigana
E se por acaso engana
A outra Ri
Porque o destino é sempre ser feliz
Solta os búzios e escuta a voz que a chama
E eu?
Dou voltas na cama e volto a dormir…desassossegadamente,!

Entrançada


Nunca encontrava guarida nos sentidos partilhados
Mexe, remexe, arranha, esgravata
Na tentativa vã de provar a sua não existência
Cansa-se
Por vezes encontra-se exausta de tanto se questionar
Exageradamente concreta a realidade
E ela sentia-se incapaz de pensar antes de agir sobre ela
Contradizia-se, era um numero dos censos como qualquer outro
Sabia-se contar para o caos comum dos números desvalorizados
Teimava em se inventar em nomes próprios
Nunca perdendo os impróprios
Sabendo-se amiga de infância..não lembrava de quem
Recordava-se num tempo ido, em fotografias cinzentas
Em molduras de casa do campo
Lembrava um jogo de escondidas onde descobrira os figos da índia…sentira prazer no desprazer ao saber que não eram comestíveis…sorrira mesmo com fome.
Cortaram-lhe as tranças de uma forma anormal
Um corte único de forma dolorosa, as lágrimas saíram da mesma maneira que aquela grossa trança…uma queda sem nada a amparar…lembrava-se ainda da ausência de cabelo no seu pescoço e de como odiara a mão, a tesoura e o poder dos outros que lhe diziam querer bem.
Jaz num saco de plástico a prova, já cadáver…da sua alma castrada
Uma vez foi num copo vazio de iogurte, que nunca soubera a que sabia, que lhe voltaram a cortar a alma…mas pouco a pouco descobrira a formula do ódio…que surge em gotas pequeninas na humilhação, no abuso de poder, nos olhos distantes de quem não sabe ver ao longe…e quando perto, olham-se apenas ao espelho.
Anestesiava o pensamento com ausência da lógica social
Sentia-se bem nesse vácuo em que a realidade dos outros não existia..talvez a primeira vez que vira o mar tenha sido uma ilusão..gostava de pensar que fora miragem aqueles dias em que a levaram até ele…e ela vira a imensidão que a formava.
Saber-se real naquelas ondas, naquele ir e vir, ora em fúria, ora em calmaria..e de uma profundidade incalculável…era doloroso demais…para ter que regressar depois e continuar dormente.
Vagueava entre o antes e o depois
Tantas vezes!!
Como num carrossel em alta velocidade
Circulava em viagens pré pagas
Mantendo os cabelos ao vento e as ideias soltas
Gostava daquela sensação alucinante
Em que se misturava o tempo do que já fora com o que ela sabia vir a ser…entrançando o cabelo e a mente.
As imagens do presente nunca surgiam…impossível reter a visão de algo em mutação constante
E sendo figo da índia, disfarçada de mar revolto…recordava-se menina de tranças que um dia voltaria a ser…sem que houvesse arma capaz de as matar!

Crónicas Marcianas


Hoje novamente vos condeno
À pena máxima que a ilegalidade da minha lei permite
Morte
Ao diz que disse
Ao consta que
Ao sabes a ultima?
Aos falatórios das esquinas sem pu.tas
À língua dos filhos da própria
Às Dolores das dores dos outros
Às Madalenas nunca arrependidas
Aos crentes num Deus que não lhe tem perdão
Aos Diabos mais pobres que os pobres diabos
Morte ao fala barato que causa a inflação
Ao contrabandista da palavra nunca por ele verbalizada
Ao zum zum sem mel
À picada sem ferrão
E a todos os comentadores vendidos
A todos os vendedores de comentários
Aos otários
Notários dos assuntos mal resolvidos
Aos falsários assumidos
Aos ovários que nos causam aflições
Até aos engenheiros das obras embargadas
Aos dentistas que nos tiram a dentada
Aos doutores que já nem atendem dores
Aos sociais membros desta porra colectiva
À mentira
À verdade
Á ideia que vos passa pela cabeça
À madeixa que deixa a tinta na gola da camisa
À imagem que é capa de revista
À fadista que chora fados repetidos
Ao bandido que se deixar apanhar
À lei sem rua
Às regras dos jogos da glória
À palavra
Ao silencio
Ao enforcado que na letra se findou
À veia que trafica a falsa alma
À calma
À confusão que em mim se instalou
E morte à morte do que não consigo matar
Para que viva como prova do perdão
Serei a pena que não se cumpre
E tudo o que faça seja apenas ilusão
A quem lhe importa?
Morta a causa
Finda a razão
E em Marte…nada de novo!

Quebranto


Quebra-se a força e a vontade
A garra da voz em luta
Quebra-se a revolta e a certeza
A forma
O ser
A esperança
Quebra-se o corpo
Pouco a pouco
Quebra-se a luz
A claridade
A alma
A gente
A lógica
Quebra-se em nós a outra face
Quebra-se a mão
O aperto
O aconchego
Quebra-se o fio
O prumo
E a destreza
Quebra-se a fúria
A arma do punho
Quebra-se o gelo
E copo
Quebra-se a vidraça
A porta
A luz
As estrelas
Quebra-se a peça
A arte
A ousadia
Quebra-se a fina lente
A corrente
Quebra-se o mar
As visões
A terra firme
Quebram-se os homens
E a crença na imortalidade
Quebra-se a palavra
Quebra-se a junção
Quebram-se os pedaços já quebrados
E despedaçados
Partem-se em nós os corações
Quebremos os restos
Juntemos os cacos
Misturemos as forças
As razões
Quebrando a rotina
Quebrando os vícios
Quebrando os medos
Quebrando os ódios
Quebremos a falta de convicções

Sonambula


Perco o sono
E procuro o encontro comigo
Ali, na escuridão do que já teve luz…tacteio-me
Não é fácil aprender a ver às cegas
Quando confundidos com a claridade do que pensamos ser
Quando habituados ao nosso reflexo
Ao espelho desfocado
À lente das máquinas que nos agarram no tempo limite do click
Aos olhos dos que nos amam
À falta de visão dos que nos odeiam
À nossa sombra
À nossa própria imagem e semelhança…que nos fizemos
Agora é um aprender de novo
Mais doloroso no erro, porque nos pensamos exactamente contrários
Desiguais de nós mesmos, recusamo-nos
Insistimos em tactear vezes a fio
Procurando a fenda que nos engoliu inteiros
Somo-nos outros, desconhecidos
Quase nós no cheiro
No paladar
Quase…nós, nesse quase
Há muitos Homens num Homem só
Li algures e sorri
Mas quando conhecermos todos os Homens que nos formam
Não saberemos dizer quem somos..porque é tarde demais para apresentações
Ou porque nos ensinaram a não falar com desconhecidos

Conversas de saltos Altos


Esgrimimos as palavras afiadas na ponta da língua
Os olhos em chama gritam autoritariamente
A verdade é aquilo em que acredito
E tu mentes ao dizeres uma outra convicção
Tua, apenas tua a ignorância
Soltam-se sorrisos irónicos
Na tentativa de pisar a estima do outro
Humilhando com um abanar de cabeça
A certeza que ridicularizamos no acto
E no fim do facto
Somos conscientes que em determinados momentos
Somos os saltos
Com que calçamos o ego
E destilamos as certezas vãs em copos pouco cristalinos
Onde a verdade é o cubo de gelo
Boiando enquanto ainda as palavras são sólidas
Diluindo-se apôs a conclusão que nada mais resta
Apenas água a mal dizer o vinho
Apenas a cor desbotada do fruto
E um copo usado, marcado a dedos
Engolimos em seco as lágrimas dos sentidos absolutos
E já descalços, somos do tamanho das certezas que gritamos
E a certeza é um pé pisando a terra ressequida
Sentido o grão e a pedra mesmo antes de a calcar
Nesse hora, somos do tamanho de todas as nossas verdades
Nunca antes confirmadas
E que tantas vezes passeamos em saltos altos.