Com_traste

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sábado, 16 de outubro de 2010

Brancas...


Já não era o mesmo
Antes as palavras saiam soltas
Com vida própria e livres
Mal as sentia ou pensava
Já elas riam como loucas
Feitas poema
Canção
Fado
Por vezes dava por ele numa livraria onde os livros saem das prateleiras, mexidos, tocados, amados como mulheres da vida (ou com vida?) por todos os que os podem e querem possuir.
E ficava sempre admirado ao ver muitas das suas palavras loucas na vitrina, assinaladas com o “ultimo sucesso” do autor..
Já nem lembrava bem os nomes que criara para sim mesmo, sabendo-se tantos, habituara-se a baptizar cada um de si, sem água benta nem orações…e nem registo fotográfico havia.
E agora estava ali, inerte à espera que elas o tomassem de assalto..mas nada acontecia.
Habituado a não saber bem quem era, nem como se tornara dono das palavras que sabia não lhe pertencer, deixou-se ficar ausente, tocou o pulso apenas para confirmar as pulsações…não gostaria de saber da sua morte pelos jornais.
Não se confirmava o óbito, facto que o deixou aliviado.
Não pelo prazer de estar vivo, mas por recear não ter tido tempo de deixar o epitáfio .
Não era homem para se entregar à morte sem antes deixar escrito que se ia…não fosse, por mero acaso, alguém gostar de saber…e nesse momento pensou nas palavras que se soltariam na morte.
Afastou a ideia do pensamento, apenas por recear que as mesmas fossem negras num fundo branco, talvez falassem de um outro que não ele, talvez falassem de Deus e do Amor, e isso ele não aceitaria!
Queria palavras brancas no branco da pedra que não lhe pesaria.
Queria que inventasse o sentimento que nenhum homem ainda sentiu…ah como seria bom conseguir ser ele o dono das suas palavras..e ai sim…teria direito a prémios ..e à eternidade.
Daria autógrafos sorrindo, daria entrevistas nos jornais de Letras e Artes, ou de Letras com Artes…ou quiçá ser convidado para aparecer na Televisão?
Olhou à sua volta e não viu ninguém, o museu iria fechar dentro de dez minutos, acabaram de avisar em várias línguas, através de umas palavras que saiam de umas colunas pretas na parede.
Aproveitou os últimos minutos olhando os quadros que estavam à sua frente…entendia agora o motivo porque colocavam aqueles bancos frente às paredes com molduras..
Seria necessário voltar amanhã, ou depois de amanhã, ou ainda depois do depois de outro amanhã qualquer…
Com sorte apanharia o momento da inspiração do pintor…
Ao sair entendeu que afinal, o preço a pagar por deixar em liberdade a criação, era a espera do criador..podendo ser tão longa quanto a vida ou tão breve quanto a morte …
Sorte dos que consegue antes dela escrever que se vão.
No dia seguinte não voltou…

1 comentário:

  1. Apanhar o momento de inspiração do pintor? Escrever que se vão, antes de partirem?
    São momentos de sorte?
    E para ler um texto como este (e outros) não é preciso ter sorte?
    E mais não digo.

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