Com_traste

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domingo, 24 de outubro de 2010

A DECISÃO DO INDECISO



A decisão do indeciso

Passavam horas, dias e anos sem que conseguisse saber ao certo que fazer
Até nas coisas diárias, em que a rotina tornava fácil ser e agir sem grandes dúvidas...
Ele perdia-se em tempos de espera, num estado de ausência da vida, tentando decidir seja o que for.
Nos domingos de manhã saia cedo para ir comprar o jornal e beber o café na esplanada mais frequentada da vila. Antes de sair a duvida do que levar vestido deixava-o nervoso, muitas foram as vezes que vestira um sobretudo e levava o guarda chuva em pleno mês de Agosto, apenas porque lhe pareceu ver umas nuvens cinzentas ..por ai!
Bebia o café sem açúcar e sem adoçante..aprendera a lidar com as situações que o punham à prova.
Tornara-se vegetariano para evitar a pergunta constante, “carne ou peixe?’
O seu primeiro e único filho (resolvera não passar mais por tal situação) levou dois meses e 3 dias para ser registado, e mesmo assim o nome (João Maria) foi decisão da sua esposa.
O jornal era lido duas vezes, gostava de se certificar das coisas antes de formar opinião.
Resolverá há muito não ter Tv em casa, a hipótese de escolha entre ver o noticias e o debate politico, ou entre um filme de época e o ultimo premiado nos Óscares, foi a causa da sua ultima depressão.
Habituara-se a andar sempre de preto, a segurança de abrir a gaveta das meias e o guarda fato davam-lhe alento para enfrentar o dia.
Em dias de eleições, chegava bem cedo e já era conhecido por ser dos poucos eleitores que pediam vários boletins de voto, entregando um por cada partido, dos quais davam baixa e eram considerados enganos normais, entregando por fim o ultimo, dobrado em tantas partes quanto conseguia, só ele sabendo que tentava ocultar dos outros o seu voto em branco. …prova da sua indecisão crónica.
Escrevia sempre a lápis de carvão…mas por via das dúvidas levava sempre consigo um mata borrão.
Começou a fazer testes de orientação profissional mesmo antes de terminar a primária.
Tirou carta de ligeiros e pesados ..mesmo sem nunca ter conduzido na vida, a questão de decidir o caminho mais curto e de se ultrapassava ou não, originaram uma Úrsula no estômago.
Era um homem atento aos pequenos pormenores, mas detestava que lhe perguntassem opinião sobre o que quer que seja..ainda se lembrava das dores de estômago que sentiu quando a sua esposa, já no altar, lhe perguntou, estou bonita?
Hoje estava perante uma situação difícil, nem dormira a pensar no dia que teria de enfrentar.
E finalmente. Pela primeira vez tomou uma decisão sem tremer ou ficar com dores de barriga.
Levantou-se, não se lavou, não se vestiu, comeu o que estava à mão, desceu as escadas sem olhar para o chão, seguro de si seguiu em frente, foi trabalhar e nem questionou o facto de estar só no escritório, ao almoço, no restaurante que escolheu entre várias opções, pediu bife de atum e não conteve a gargalhada …já no fim do dia, sentou-se no banco de jardim perto de casa e deixou-se ficar até anoitecer. Olhou um ponto qualquer no horizonte e nem questionou se seria o sol a pôr-se ou a lua a acordar. Disse em voz alta: gosto disto, seja lá o que for!
Sorrindo chegou a casa e deitou-se na cama que ainda parecia quente
Sentia-se outro e já não temia ter que decidir seja o que for..
No dia seguinte, segunda-feira de um mês que desconheço, escrevia-se em todos os jornais:
Matou-se o homem que nunca decidiu nada na vida!
Ainda havia restos da sua personalidade nos dois copos encontrados junto ao leito…um com chá de limão sem açúcar, outro com cicuta e adoçante.
Bebera a mesma dose dos dois.

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